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terça-feira, 3 de maio de 2016

Realidade fundiária e estrangeirização de terras no Brasil


entrevista de Bernardo Mançano Fernandes (*) à Leslie Chaves e Patricia Fachin, do IHU



IHU On-Line – Fazendo um balanço histórico dos dados dos relatórios DATALUTA produzidos ao longo de 16 anos, quais mudanças destacaria como mais significativas em relação à composição da estrutura fundiária brasileira?

Bernardo Mançano Fernandes - É muito difícil analisar as mudanças na estrutura fundiária brasileira porque as duas fontes que temos trazem dados indefinidos. A tabela 6 do relatório DATALUTA mostra que, entre 1998 e 2014, a área das propriedades rurais saltou de 415 para 740 milhões de hectares. E o índice de Gini aumentou de 0.838 para 0.860. Estes números necessitam ser conferidos para que possamos conhecer a verdadeira área dessas propriedades. O censo agropecuário de 2006 informa que há uma área de mais de 300 milhões de hectares com outras ocupações, sem definir quais. Quando o Estado não tem informações bem definidas sobre seu território, configura-se uma situação de precariedade dos registros que impede análises mais aprofundadas da questão fundiária e, portanto, da questão agrária. A minha hipótese é que a manutenção desta precariedade é intencional, porque gerar a indefinição é uma forma de impedir o conhecimento mais aprofundado da estrutura fundiária e a criação de políticas de desconcentração da terra. Esta indefinição, com relação ao número real de propriedades e seus usos, produz questões que precisam ser respondidas para que tenhamos controle sobre o território nacional onde estão os territórios ocupados pelo latifúndio, pelo agronegócio, pelo campesinato e as terras em poder do Estado.

Por exemplo, por que as experiências de reforma agrária no Brasil não modificaram a estrutura fundiária? Inclusive, alguns estudiosos dizem que não há reforma agrária no Brasil, porque partem do pressuposto que a reforma agrária tem que desconcentrar a estrutura fundiária. Mas esta premissa pode impedir a compreensão num país como o Brasil, que tem uma estrutura fundiária indefinida. O relatório DATALUTA mostra que entre 1979 e 2014 nada menos que 81.950.074 hectares foram destinados à criação de 9.337 assentamentos, onde estão assentadas 1.110.753 famílias. A área total dos assentamentos representa 9,5% do território brasileiro. Há vários fatores que explicam por que este montante não impactou a estrutura fundiária: 1) a maior parte das terras destinadas aos assentamentos é resultado de regularização fundiária e não de desapropriação; 2) a fronteira agrícola ainda está aberta, portanto continua a expansão de áreas agrícolas sobre áreas de florestas; 3) o cadastro de terras é declaratório e não há fiscalização, o que dificulta saber o quanto representa de fato; 4) o censo agropecuário não conseguiu até o momento captar as áreas reformadas de fato, o que seria uma possibilidade de análise pelos estabelecimentos rurais.


Campesinato brasileiro

Estes números revelam que nos últimos 35 anos o campesinato brasileiro conquistou mais de 80 milhões de hectares. Não há estudos sobre outros países onde o campesinato tivesse conseguido resultado similar. Isto coloca o Brasil num patamar diferenciado, pois não permitiu a diminuição da participação da agricultura camponesa no desenvolvimento territorial em disputa com o agronegócio. Por meio da luta pela terra, os movimentos socioterritoriais têm mantido o controle territorial em torno de 26% das terras agrícolas. Muito diferente de Argentina e Chile, onde o campesinato foi quase exterminado, onde controlam algo em torno de 5% das terras, ou de Peru, Bolívia e Equador, onde o campesinato indígena controla a maior parte das terras agriculturáveis.

Mas o que significa esta conquista no Brasil? Aqui também alguns estudiosos questionam os resultados do desenvolvimento da agricultura camponesa, como por exemplo: produção, renda, tecnologia, etc. O problema desses críticos é que eles usam como referência o modelo do agronegócio, que é hegemônico e controla a política de desenvolvimento no campo em todo o mundo, para analisar o modelo de produção camponês, que não tem estas características. É essencial enfatizar que as corporações transnacionais controlam os governos que não têm autonomia para definir os programas de desenvolvimento agrícola. Resta aos camponeses um papel essencial, mas subalterno. Essencial porque eles produzem os principais alimentos da nossa mesa, mas recebem muito pouco e, portanto, continuam pobres. Mesmo entre os camponeses, a produção também é concentrada, em torno de 15% produzem 80% do valor bruto da produção, enquanto 85% produzem o resto.

A situação de pobreza do campesinato como resultado da subalternidade ao mercado capitalista precisa ser superada para o desenvolvimento da agricultura brasileira. Para o desenvolvimento do campesinato, é fundamental construir políticas de formação agroecológica, aproveitando ao máximo as experiências em construção e a ampliação de mercados institucionais, além da criação de cotas do mercado convencional para a agricultura familiar, investimento em pesquisa e tecnologia para agricultura camponesa, criação de infraestrutura, etc. Sem essas condições, a agricultura camponesa continuará subalterna ao agronegócio. Evidente que o agronegócio não tem interesse na superação da subordinação do campesinato, portanto o Estado é a única instituição capaz de criar políticas que garantam a autonomia da agricultura familiar.

IHU On-Line – Quais são as dimensões das desigualdades socioterritoriais atualmente? Como os movimentos do campo têm se mobilizado?

Bernardo Mançano Fernandes - As dimensões da desigualdade atingem o desenvolvimento em sua totalidade. Por exemplo, a população rural é mais pobre que a urbana, por conseguinte tem menos acesso à educação, saúde, moradia, transporte, infraestrutura, equipamentos, serviços, etc. A inexistência dessas condições está associada a uma compreensão de que para acessá-las é preciso ir para a cidade. Os movimentos do campo têm se mobilizado para mudar esta visão e reivindicam todas as dimensões do desenvolvimento. Para qualificar e aumentar a produção agropecuária, é necessário mais moradias, escolas, universidades, mercados, indústrias, pequenos hospitais, transporte, as condições básicas para a dignidade da população do campo. Mas estes recursos têm que estar no campo para o desenvolvimento territorial rural, reafirmando que o campo não é somente lugar da produção agropecuária, é espaço de vida na sua plenitude, assim como a cidade.


Gestão dos interesses

Para construir essas condições, o governo precisa ter controle sobre o cadastro da estrutura fundiária, sobre as políticas agropecuárias e criar um conjunto de políticas públicas que atendam todas as dimensões do desenvolvimento territorial. Isso significa uma gestão a partir de interesses mais amplos que os interesses do agronegócio. Construir essa compreensão é fundamental para superar a situação de pobreza dos pequenos agricultores e acelerar a reforma agrária. A falsa compreensão que se tem hoje é que os interesses do agronegócio são os mesmos do campesinato. O agronegócio não é somente uma palavra, é o modelo de desenvolvimento da agricultura capitalista. Os interesses dos camponeses fazem parte de um modelo de desenvolvimento que não inclui a produção monocultora para exportação e tampouco o uso de agrotóxicos. O agronegócio não tem interesse em que as pessoas tenham terra e vivam no campo. Esta condição é vista como situação de atraso.

O agronegócio acredita que pode controlar toda a produção agropecuária e eliminar o campesinato. Ele quase eliminou o campesinato em países como a Inglaterra, Argentina e Chile. A eliminação do campesinato significa que a fonte dos alimentos será somente as grandes corporações. Esta condição é inviável. Tanto na Europa como na América do Norte, a população tem se organizado para produzir seu próprio alimento, com qualidade, livre de venenos. Acredito que a disputa pela comida está se tornando tão forte quanto a disputa pela terra. E o agronegócio domina estas duas frentes, mas o campesinato, que não é tão poderoso quanto ele, é capaz de criar outro modelo para se contrapor. Ao mesmo tempo que o agronegócio é poderoso, tem seu ponto fraco em seu próprio modelo de produção: ele não consegue produzir sem o uso intensivo de veneno. E cada vez mais fica refém de seu próprio veneno. A mobilização dos movimentos camponeses tem que ser então pela agroecologia. Este é seu ponto forte. Não há dúvidas que, cada vez mais, a população vai preferir comida saudável do que comida envenenada.

Portanto, mesmo com a precariedade de dados e as imensas desigualdades, a perspectiva é positiva, porque tratar da terra e da comida é tratar da vida, do futuro. Temos que fomentar o debate sobre a qualidade de vida, da comida e da terra. Isto é parte da questão agrária. É isto que o capitalismo agrário não quer debater. Porque o agronegócio não consegue produzir comida saudável e acabar com as desigualdades. Estes são temas estranhos a ele. O máximo que o agronegócio pode fazer é explorar o campesinato através da subordinação da produção, como o fumo, a laranja, a soja, a cana, etc. E explora porque o campesinato tem a terra, e o agronegócio não tem interesse em produzir determinadas culturas. Quando controla a terra e tem interesse, o agronegócio verticaliza a produção e elimina o campesinato.

A dimensão que está na essência da produção da desigualdade é a renda capitalizada da terra, incorporada pelo capitalismo quando o agricultor vende sua produção para as corporações. Embora esta seja a questão central da desigualdade, os capitalistas não querem debater, porque este processo é da natureza do capitalismo. Logo, não há saída para o campesinato dentro do mercado capitalista. Por esta razão o campesinato vem sendo exterminado lentamente em todo o mundo. Ele resiste, se recria, como é o caso do Brasil, mas continua sendo destruído. A criação de mercados institucionais como o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE foi um alento para muitos camponeses brasileiros. Estas políticas tiveram efeito positivo e serviram de inspiração para países da América Latina e África.

IHU On-Line – De que forma a violência no campo está atrelada à estrutura fundiária brasileira?

Bernardo Mançano Fernandes - A classe mais atrasada do Brasil é a latifundiária. Mas também é uma das mais poderosas. Uma forma de sua materialização é a bancada ruralista no Congresso Nacional. Outra expressão foi a União Democrática Ruralista – UDR, que em nome da defesa da propriedade privada articulou recursos que foram utilizados na defesa armada na intensificação dos conflitos fundiários nas décadas de 1980 e 1990. A UDR não morreu, ela está em quarentena e pode ressurgir a qualquer momento. Um país com estrutura fundiária concentrada e aumento das desigualdades tem como resultado a luta pela terra como forma de sobrevivência. Com o crescimento do número de ocupações, aumenta a violência. Temos assim dois tipos de violência: enquanto a renda capitalizada da terra é a forma econômica, a estrutura fundiária concentrada é a forma territorial de violência contra o campesinato. Estou me referindo a diferentes tipos de camponeses, como os posseiros e os sem-terra, que lutam cotidianamente para ter acesso à terra. São eles que estão morrendo na infinita luta pela terra. Embora a concentração da estrutura fundiária seja secular, não se tem construído possibilidades de solução, porque os ruralistas controlam os três poderes. Quando me refiro aos ruralistas, não estou me limitando à classe latifundiária, estou incluindo também a classe capitalista.

O agronegócio aliou latifúndio e capital. Uma expressão desta aliança é a Kátia Abreu como ministra da Agricultura. Esta coligação começou em meados do século XX nos Estados Unidos e continua se expandido pelo hemisfério Sul, tornando-o um conjunto de repúblicas de commodities: banana, soja, cana-de-açúcar, laranja, etc. A produção de commodities é feita em grande escala com intenso uso de agrotóxico, para exportação, denominada secularmente de plantation. É, ao mesmo tempo, uma forma intensiva de exploração dos recursos naturais, como terra, água, florestas, por meio do controle da concentração fundiária e de eliminação dos povos indígenas, quilombolas, camponeses. É uma forma de atrelar a violência da concentração da estrutura fundiária (forma territorial) com a violência do capital (forma econômica). Portanto, não há diferença entre a violência praticada pelo latifúndio e a praticada pelo agronegócio: ambos matam e aniquilam os povos que resistem à sua territorialização. Este processo de desterritorialização dos povos do campo e das florestas está se intensificando em todo o mundo.


A questão agrária no século XXI

O século XXI trouxe novos elementos da questão agrária: a mudança da matriz energética tem levado à expansão da produção de agrocombustíveis e à crise alimentar. Árabes, chineses, indianos, argentinos e brasileiros se somaram aos norte-americanos e europeus na disputa por territórios no hemisfério Sul para a produção de commodities energéticas, fibras e alimentares. Este processo consolida o modelo do agronegócio que unificou um complexo de sistemas: agrícola, pecuário, industrial, comercial, financeiro, tecnológico e ideológico. Esta consolidação coloca o latifúndio como um aliado fundamental, pois é a base territorial do processo. As terras ociosas tornam-se altamente produtivas no mundo da competitividade e do empreendedorismo. Terras griladas na região do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, são usadas para a produção de cana-de-açúcar pela Odebrecht, recém chegada ao agronegócio. E denomina a usina de álcool de “Conquista do Pontal”, numa clara provocação ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, que tem atuado na região disputando as terras griladas.

Há estudiosos que defendem que não é mais necessário desconcentrar a estrutura fundiária para o desenvolvimento da agricultura, pois o modelo do agronegócio necessita de grandes extensões de terra. Naturaliza-se a concentração da terra na defesa de um projeto de desenvolvimento hegemônico. O poder dos latifundiários e dos empresários capitalistas que fazem parte do agronegócio determina as eleições e as políticas governamentais em todas as escalas. Nos governos Lula e Dilma foram criadas políticas públicas que escaparam a este modelo. Não foi uma concessão do agronegócio, foi uma disputa por modelos de desenvolvimento. A criação de um projeto de desenvolvimento do campesinato, a partir das suas referências e modos de produção, está em construção no Brasil através da Via Campesina e é a principal forma de resistência contra o poder violento do agronegócio.

IHU On-Line – Neste ano foram incluídos no relatório DATALUTA dados sobre a estrangeirização de terras. Que papel a estrangeirização de terras tem ocupado na estrutura fundiária brasileira? Qual é a importância de inclusão desta categoria no relatório?

Bernardo Mançano Fernandes - A importância de incluir a categoria estrangeirização no relatório está na necessidade de atualizar os conhecimentos sobre a questão agrária. Quando começamos as pesquisas, em 1998, as ocupações de terra eram a categoria central da questão agrária. Depois fomos incorporando outras categorias, como os movimentos e as manifestações. Estamos pesquisando a estrangeirização há sete anos para conhecer como tem impactado a estrutura fundiária brasileira, mas, como salientamos, não há dados sistematizados para essa análise. Estamos construindo uma metodologia de pesquisa para poder organizar este banco de dados.

Estrangeirização de terra não é um processo recente, mas se intensificou a partir da primeira década deste século. Estrangeirização da terra significa o controle de extensões territoriais e seus recursos naturais, por empresas e governos estrangeiros, para a produção de commodities visando atender aos interesses dos investidores em detrimento dos interesses e necessidades da população impactada. É um novo elemento da questão agrária do século XXI. Muitos dos investidores são fundos de pensão de países ricos que procuram reproduzir o capital por meio da produção de commodities. A geração de riqueza para um grupo social de um país rico é feita no território de um país pobre que tem sua população expropriada e ou impedida de usar esse território.


Dificuldades

A escassez de fontes é o principal desafio para pesquisar a estrangeirização. A metodologia que construímos até o momento permite cadastrar noventa empresas e fundos relacionados, país de origem do capital e as commodities produzidas. É uma aproximação, não temos referências do que esses dados representam do total do processo, porque não há dados que permitam esta análise. Esta escassez de dados é intencional, é uma forma de impedir o conhecimento sobre os fatos. O que implica na soberania do país, evidentemente. Enquanto o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos tem o controle sobre sua estrutura fundiária, nós precisamos consultar o Google. Neste caso o Google tornou-se uma fonte de informações.

A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia publicou carta aberta na qual defende que é preciso “fomentar um processo de planejamento e gestão do território brasileiro que leve em consideração a necessidade de frear o desmonte e o descrédito das bases informacionais dos principais organismos geradores de dados oficiais, a exemplo da cartografia oficial, que está cada vez mais desatualizada e com conflitos institucionais de atribuição. O Google não pode substituir a cartografia de Estado do país continental”.

Com o banco de dados que estamos construindo, podemos saber quais são as empresas e onde elas atuam e o número de propriedades, mapeando suas presenças no território nacional. Estas empresas estão comprando ou arrendando terras para produção das seguintes commodities: cana-de-açúcar, monocultivo de árvores, soja e milho. As corporações estão predominantemente na faixa do bioma do Cerrado e já instituíram uma região onde têm intensificado a compra de terras, que é a região do Matopiba, formada por partes dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

IHU On-Line – A estrangeirização de terras contribui para o acirramento das disputas territoriais no campo? De que modo?

Bernardo Mançano Fernandes - Sim, as disputas territoriais no campo mudaram na última década. Agora além do latifúndio e dos sem-terra, que sempre disputaram as terras, há as corporações comprando terras e expandido a produção de commodities. Há diferentes tipos de conflitos, desde o impedimento ao acesso à terra, pela aquisição por estrangeiros, ao isolamento de comunidades que estão cercadas pelo monocultivo e são atingidas pela pulverização aérea de veneno. Para os governos, em todas as instâncias, aquisição de terras por estrangeiros significa desenvolvimento, enquanto as populações atingidas são um estorvo para a produção de commodities. A violência que estas comunidades sofrem é naturalizada em nome do agronegócio.

IHU On-Line – Em relação aos históricos movimentos por terra, existem especificidades nas mobilizações de comunidades tradicionais e de pequenos agricultores que lutam por seu território e contra remoções forçadas para a construção de obras de infraestrutura, como as Usinas hidrelétricas?

Bernardo Mançano Fernandes - Sim, são várias frentes de luta: resistir para não perder a terra e lutar para entrar na terra são formas territoriais de resistência. Este processo está em movimento em todo o Brasil por causa dos megaprojetos que estão sendo construídos. Temos cadastrados 126 movimentos que denominamos de movimentos socioterritoriais porque a sua existência está fundada no território. Os movimentos indígenas foram os que mais cresceram em número de ações em defesa de seus territórios. As lutas por resistência na terra têm crescido, enquanto a luta para entrar na terra tem diminuído. Este fato é resultado da estrangeirização da terra que tem desterritorializado povos indígenas e camponeses e impedido o acesso à terra.

Outras frentes de luta são marcadas pelas mobilizações na proposição de políticas públicas para o desenvolvimento territorial. Como não há um plano governamental para os povos do campo e estes ainda não possuem um plano consolidado para o desenvolvimento de seus territórios, as manifestações que registramos revelam a fragmentação e a diversidade das reivindicações: terra, crédito, educação, moradia, infraestrutura, assistência técnica, mercado, tecnologia, etc.

IHU On-Line – Em que consiste o trabalho da Rede DATALUTA? De que forma seus estudos têm contribuído para o tema da questão fundiária no Brasil?

Bernardo Mançano Fernandes - A Rede DATALUTA é formada por dez grupos de pesquisa que estão presentes em todas as regiões brasileiras. Também temos projetos de pesquisa em outros países da América Latina, como a Argentina e a Colômbia. Para a manutenção deste banco de dados com diferentes categorias, é necessário o trabalho cotidiano de dezenas de pesquisadores. O trabalho em rede permite atuar em todas as escalas: local, regional, nacional e internacional e congrega pesquisadores de vários níveis: graduação, mestrado e doutorado, promovendo o intercâmbio de experiências e a criação de um método interpretativo sobre o desenvolvimento do campo. Criamos o debate paradigmático para compreender como diferentes métodos de análise possuem visões diferentes sobre o desenvolvimento da agricultura. Os paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário dominam os modelos interpretativos em todas as áreas do conhecimento.

Os grupos de pesquisa da Rede DATALUTA têm uma posição definida sobre o desenvolvimento do campo, e defendemos a expansão da agricultura camponesa. Entendemos que estes agricultores possuem papel essencial para a produção de alimentos de qualidade e precisam ampliar sua participação nas disputas territoriais e por modelos de desenvolvimento. A hegemonia do agronegócio não se sustenta devido aos problemas que ele mesmo gera: aumento do uso de veneno e das desigualdades sociais. A produção do conhecimento pela Rede DATALUTA é divulgada através da publicação de artigos em revistas nacionais e internacionais, dissertações, teses, boletim DATALUTA (mensal), relatório DATALUTA (anual) e livros que contribuem, por exemplo, para compreender como a questão fundiária está associada a um fundo de pensão americano, cujos beneficiários vivem às custas da expropriação e miséria dos camponeses do hemisfério Sul; que a produção de commodities para exportação aumenta o PIB e a desigualdade, numa política de desenvolvimento dependente.

Nossos estudos têm contribuído para mostrar que terra e território não podem ser separados porque os agricultores não existem sem terra e território. Por isso a renda da terra é uma renda territorial e a sua produção impacta na vida das pessoas. Porque as pessoas são territórios.

IHU On-Line – A partir desses 15 anos de pesquisas sobre os temas ligados à organização fundiária brasileira, que perspectivas traça sobre a situação da questão agrária no país?

Bernardo Mançano Fernandes – Por meio da publicação anual do relatório DATALUTA e da publicação mensal do boletim DATALUTA, temos acompanhado as mudanças conjunturais da questão agrária. Nossas pesquisas têm demonstrado que a questão agrária não é um problema que possa ser resolvido pelos governos. Quero lembrar que a estrutura fundiária concentrada é um dos componentes da questão agrária, mas há outros mais importantes, como a renda capitalizada da terra, por exemplo. Os governos podem minimizar ou intensificar as desigualdades criadas pela questão agrária através de políticas públicas.

Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro governo, minimizou a questão agrária com a criação de assentamentos e de créditos agrícolas, mas no segundo governo intensificou a questão agrária com a criminalização da luta pela terra. Como sociólogo filiado ao paradigma do capitalismo agrário, Fernando Henrique Cardoso acredita, ainda hoje, que é possível solucionar a questão agrária com a “integração” dos camponeses ao sistema capitalista. Este é um erro comum dos governos que acreditam que o paradigma do capitalismo agrário possa resolver a questão agrária. Não pode, tanto que este paradigma não entende a questão agrária e a nega. Na realidade, “integração” é subordinação e expropriação, que gera conflitualidades. Paradigmas são modelos teóricos interpretativos dos quais pessoas e instituições se utilizam para criar políticas que gerem as relações necessárias para a transformação das realidades.

Temos escrito que a questão agrária é um problema estrutural do capitalismo. A produção da questão agrária é da natureza do capitalismo. Por essa razão não há solução, mas a procura permanente por solução pelos movimentos e governos e o avanço do capitalismo fazem com que tenhamos diferentes conjunturas agrárias. Tivemos um avanço na conquista da terra entre 1995 e 2010 e hoje está ocorrendo um refluxo da luta pela terra, com o acirramento da violência e aumento da estrangeirização da terra. Aprendemos nestes 15 anos que o problema agrário não é somente um problema dos camponeses, do capitalismo e do Estado, mas é sim um problema de todos nós. Estamos tratando de modelos de organização da sociedade, do ordenamento territorial, da produção de alimentos e da vida.

A sociedade em geral terá de debater qual modelo de desenvolvimento é necessário para o nosso futuro: o agronegócio ou a agroecologia. Estamos convencidos de que eles não são compatíveis e que a conflitualidade é o modo de relação de disputas por território e recursos. Estamos certos de que este debate será feito pelas comunidades urbanas, que podem produzir e fazer parte da produção de alimentos saudáveis, rompendo com a lógica monocultora com uso de veneno, a padronização e artificialização.



(*) Geografo e doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo – USP. Leciona na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp

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