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sábado, 28 de maio de 2016

Bioeconomia: perspectivas e desafios numa economia baseada em biomassa





adaptado do portal do Clube de Engenharia - resenha de uma palestra proferida em 19 de maio de 2016 por José Vitor Bomtempo Martins, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro


Embora o tema pareça novo, a bioindústria tem sido testada em todo o mundo. Atualmente, vêm trabalhando com biomassa e bioeconomia start-ups de base tecnológica, investidores de risco e empresas estabelecidas de diferentes indústrias, como energia, petróleo e gás, química, biotecnologia, agroindústria, alimentos, papel e celulose... inúmeras empresas já utilizam materiais como resíduos urbanos, bio-óleo, gases de exaustão fermentados e algas em sua produção. Este modelo de indústria, embora ainda não definido, representa, sem dúvida, uma oportunidade para novos competidores, empresas e países: cada iniciativa é inovadora.

Para além dos biocombustíveis

A porta de entrada do tema da biomassa foram os biocombustíveis, como o etanol. A possível estruturação de uma indústria derivada da biomassa é um assunto que inclui os biocombustíveis, mas vai além. Por ser incipiente, existem diversas definições de bioeconomia. Uma definição canadense, por exemplo, inclui um compromisso de sustentabilidade. Outra, americana, sugere uma transição industrial. Na definição da Confederação Nacional da Indústria (CNI), de 2014, a bioeconomia “está relacionada à invenção, desenvolvimento e uso de produtos e processos biológicos nas áreas da biotecnologia industrial, da saúde humana e da produtividade agrícola e pecuária”. A CNI propõe ainda diminuir a dependência do petróleo, dispor de opções tecnológicas com menor impacto ambiental, transformar processos industriais e aumentar a produtividade agrícola.

A premissa é usar a biomassa vegetal ou animal para produtos químicos e industriais, que sejam sustentáveis, na transição industrial para o uso de biomassa. No caso do Brasil, o país carrega o histórico com os biocombustíveis, um conhecimento que agora vai se estruturando: “É fundamental entender essa atividade como uma estrutura industrial emergente”.

Inovação e competitividade

Sem estrutura industrial definida, a bioeconomia é um setor com dinâmica de concorrência baseada em inovação. A previsão é que se criem cada vez mais políticas que a incentivem, na busca de estruturar novas empresas, com um novo modelo de negócio. A área coloca biotecnologia avançada e industrial à disposição para indústrias que não faziam tal uso. A visão da bioeconomia é uma visão de mudança, segundo o professor: muda a matéria-prima da indústria, dos combustíveis fósseis, para a biomassa.

A estruturação da bioeconomia depende da co-evolução de cinco dimensões-chave: matérias-primas; tecnologias de conversão; produtos; modelos de negócio e, envolvendo tudo isso, uma paisagem sócio técnica propícia. Incluindo instituições, regulações e tendências da sociedade. Para a indústria química, por exemplo, é complicado mudar a matéria-prima utilizada, pois esta está baseada na localização geográfica da indústria, a quantidade necessária e demais escalas.

Desafios das matérias primas renováveis

Existem questões quanto ao uso de matérias primas renováveis. Se vindas diretamente da natureza, a extração deve ser baseada em conhecimento de como se explorar aquele bem. Outro aspecto que perpassa é a sazonalidade: um fruto, por exemplo, tem safras. No período de entressafra não tem produção. É preciso, ainda, saber lidar com os resíduos. No caso de carvão e petróleo, os resíduos servem a indústrias alheias à de energia. Para a biomassa, portanto, é preciso também descobrir fins para os resíduos das matérias-primas renováveis e organizar um processo de disponibilidade para, a partir daí, estruturar a indústria. A mudança para a bioeconomia deve representar sustentabilidade.

Mesmo que a matéria-prima seja abundante, como o esgoto, por exemplo, a grande dificuldade é como estruturar o projeto industrial. Em 2005, quando surgiu o Mapa do Biodiesel, este mostrava uma infinidade de elementos que poderiam ser biodiesel, mas ao longo do tempo só duas foram desenvolvidas com esse fim: soja e sebo (gordura animal). Diversas outras questões, da produção industrial, cercam o assunto da biomassa. Além da principal dúvida - que matéria-prima utilizar? -, é preciso pensar em processos de conversão, biotecnologia a ser utilizada, processos químicos, etc. As empresas continuam testando as diversas rotas para chegar aos produtos.

A primeira geração de biocombustíveis foi de um produto substituto “imperfeito”, o etanol, que apresentou alguns obstáculos como adaptação dos motores, e se apresentou com uma estrutura muito cara, mas que nos anos 80 era necessário, afirmou. E há os produtos substitutos “perfeitos”, como os biohidrocarbonetos, o polietileno verde (da empresa Braskem) e os combustíveis de aviação. Mas é preciso descobrir que produtos podem se tornar efetivamente competitivos nas biorrefinarias, com uso eficiente da biomassa. Além do uso para o funcionamento da indústria, buscam-se novas embalagens sustentáveis.  Um exemplo seria o polyethylene-furanoate, chamado de PEF, e uma nova versão do PET: o PET renovável a partir de p-xileno renovável.


quarta-feira, 18 de maio de 2016

Não fale mal do SUS, você ainda vai precisar dele



Sim, rever o tamanho do SUS: Para Maior!...


por Alexandre Padilha (ex-Ministro da Saúde), no Carta Maior




Fruto da luta democrática e da capacidade de construir consensos institucionais a partir de necessidades simbólicas do nosso povo, o Brasil assumiu um compromisso inédito para um país de mais de 200 milhões com a criação do SUS: estabelece que a Saúde é um Direito de Todos e um dever do Estado.

Ao longo da sua história, esse Direito vem sofrendo ataques sistemáticos. De um lado por interesses privados e corporativos, no seio de um mercado de produtos, tecnologias e serviços gerado pelo esforço de acesso universal a 200 milhões de pessoas. Do outro, por aqueles que não admitem um Estado que garanta direitos e, sim, defendem um Estado que apenas garanta as condições para os interesses de mercado, incluindo aí apenas as politicas compensatórias necessárias para garantir a sobrevivência dos seus consumidores e um ambiente político de estabilidade.

Esta disputa constante ao longo dos seus mais de 25 anos foi repleta de avanços e recuos, mantendo inconclusos seus desafios estruturantes como: um financiamento sustentável compatível com o esforço realizado por outros países com sistemas universais, responsabilidade sanitária dos 3 entes federativos e consolidar um modelo de atenção humanizado em que a medicalização e a hospitalização não sejam a tônica.

No período mais recente, dois baques para a consolidação do SUS foram a retirada da CPMF, imposto que incidia sobre a parcela mais rica do pais e combatia a sonegação, e as tentativas bem sucedidas subsequentes de reduzir os recursos vinculados.




Apesar disso, avançamos no enfrentamento:

1) de interesses de algumas corporações no debate e implementação do Mais Médicos e todas as medidas de fortalecimento da Atenção Básica;

2) de interesses exclusivos do mercado, com a Lei que estabelece regras para incorporacão de medicamentos e tecnologias (criando a Comissão nacional de Incorporação tecnológica no Sus) e no início da implementação do ressarcimento ao SUS pelos planos de Saúde;

3) de interesses pautados pelo obscurantismo com a ampliação de uma rede de atenção Psicosocial não manicomial, com o nome social no cartão SUS, com a lei que obriga os serviços de saúde a garantirem a atenção integral as mulheres vítimas de violência (profilaxia contra gravidez indesejável, contra DSTs e registro de provas para denúncia à justiça no próprio serviço de saúde )

4) de superação do modelo hospital e médico centrado com a expansao da urgência pré-hospitalar, da atenção domiciliar e dos consultórios na rua, por exemplo.

É alarmante, neste cenário, que a direção apontada pela autoridade máxima do SUS é em reduzí-lo e não enfrentar os desafios para a busca constante do seu fortalecimento. Em um momento em que o país precisa discutir e se mobilizar para reduzir a carga tributária sobre seus trabalhadores e ampliar a participação tributária dos setores mais ricos, dos proprietários de helicópteros, iates e aviões, das grandes heranças, das movimentações financeiras, dos bônus e dividendos não tributados para manter e ampliar o SUS. Um sistema de saúde que, cada vez mais, se depara com o subfinanciamento e os novos custos decorrentes do envelhecimento e da nossa realidade urbana, falar em redução do SUS é um sinal absolutamente contrário aos nosso desafios.

Apesar dos avanços, nossos números não permitem qualquer afirmação no sentido de reduzir o tamanho do SUS . O acesso à saúde ainda é muito desigual. Mesmo com o passo decisivo do Mais Médicos, que garantiu médicos compondo equipes na atenção primária para mais de 60 milhões de habitantes, ainda estamos longe de parâmetros de cobertura similares aos Sistemas universais europeus que nos inspiraram na Europa.

Em 2003, simplesmente inexistiam serviços na rede pública que ofereciam diagnóstico e tratamento integral de alta complexidade em cardiologia, neurologia e oncologia fora das capitais de mais da metade dos estados da federação do país e na quase totalidade dos estados do Norte e Nordeste, por exemplo. E onde existiam, havia uma profunda concentração relacionada ao mercado privado de saúde.

Iniciamos o caminho para superar esta desigualdadede de acesso com os governo Lula e Dilma. Foram políticas de expansão das redes de urgência e emergência, a criação e implantação do SAMU, planos nacionais de expansão de cuidados especializados da Saúde integral da mulher, de rede oncológica, unidades do trauma e cardiologia, expansão dos programas de formação de especialistas, mas o país ainda é muito desigual. Por exemplo, o Brasil é dividido em 436 regiões de saúde . Dessas, 103 possuem serviços de atendimento integral a mulheres com câncer de mama, apenas 15 Unidades federativas têm serviços especializados para todos os procedimentos cirúrgicos de tratamento para coluna e 21 estados têm serviços especializados para todos os tratamentos de cardiologia. Mais acesso ao SUS é um dos desafios cruciais para reduzir a desigualdade social e regional no Brasil.

Não basta crescer, é necessário crescer junto com os que mais precisam, mais vulneráveis. O envelhecimento populacional; características de populações vulneráveis: como aqueles que vivem em situações rua, aqueles que ocupam os espaços rurais, aqueles cuja atividade profissionais ou modos de viver nas cidades tornam seus horários incompatíveis com o uso regular das unidades, contrastes culturais como a população indígena e imigrantes exigem não apenas um SUS maior, mas mais próximo dos modos diversos de vida dos 200 milhões de brasileiros. O SUS precisa crescer em tamanho e em diversidade .

Um compromisso de um SUS maior e com mais acesso não significa compactuar com o que existe de desperdício, de desvio e de gastos excessivos travestidos de acesso universal. Mas é preciso ficar bem claro que os gastos excessivos não tem qualquer relação com as diretrizes do SUS, pelo contrário, são frutos ou de interesses privados não republicanos ou da persistência de um modelo que supervaloriza a subespecialidade ou a incorporação tecnológica critica. O combate ao desperdício ou custos excessivos exigem Mais SUS e não Menos SUS.

Na cidade de São Paulo, o esforço do Prefeito Fernando Haddad em reconstruir a Atenção Básica mostrou uma parte deste caminho. Em 2012, de cada 100 consultas na atenção básica, 24 demandavam encaminhamento para especialistas. Em 2015, além de ofertar 1 milhão a mais de consultas na atenção básica,de cada 100 apenas 12 demandaram encaminhamento para especialistas. No Brasil, o enfrentamento feito pelo Minisitério da Saúde em relação a máfia de órteses e próteses revelou que não é entregando ao privado que se reduzirá o desperdício.

Assim como na cobertura da imprensa internacional sobre o golpe, muitas vezes, a luz da vivência de outros países nos fazem valorizar os avanços que conseguimos com muita luta. Na última semana, dois fatos que vivenciei na batalha em buscar mais qualidade para a saúde da cidade de São Paulo evidenciam o quanto não podemos permitir qualquer passo atrás, naquilo que já foi conquistado na busca de um sistema universal. Um deles, durante o lançamento da nossa política de Saúde para população imigrante, as expressões de defesa do SUS de quem já viveu as exclusões de direitos em outros países. O outro, durante a visita de 14 cidades chilenas à nossa rede, cientes das nossas dificuldades, mas espantados de como garantimos um conjunto de atendimentos e procedimentos aparentemente básicos gratuitamente no SUS -- algo que só ocorre com pagamento no Chile.

A agenda inicial daqueles que assumiram o governo federal sem voto é exatamente aquela que foi sucessivamente derrotada nas urnas em 2002, 2006, 2010 e 2014. Isto só torna cada vez mais cristalino que a chamada "ponte para o futuro" mais parece um episódio da série daquele blockbuster "De volta para o futuro", em que a tal máquina do tempo levava seus personagens ao passado, ao invés do futuro. Para enfrentá-la não há nenhuma máquina produzida pela ficção, mas a realidade concreta consolidada ao longo da história: a luta nas ruas, nas redes e nos espaços institucionais, resistência e muita articulação política para ampliarmos a aliança com a sociedade na defesa dos seus direitos seriamente ameaçados. É uma oportunidade única para todos aqueles que se referenciam na esquerda, que defendem o mínimo de desigualdade e o máximo de diversidade que influenciará nas nossas escolhas do presente e nos caminhos do futuro.

terça-feira, 17 de maio de 2016

A agricultura convencional e a transdisciplinaridade




Entrevista com Antonio Donato Nobre, cientista do Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – CCST/Inpe, conduzida pelo IHU On-Line



IHU On-Line - Quais os impactos da produção agrícola nas mudanças climáticas? Quais os riscos que o modelo do agronegócio (baseado nas grandes propriedades e produção em larga escala de uma só cultura por vez) representa?

Antonio Donato Nobre - A ocupação desordenada das paisagens produz pesados impactos no funcionamento do sistema de suporte à vida na Terra. A expansão das atividades agrícolas — quase sempre associada à devastação das florestas que têm maior importância na regulação climática — tem consequências que se fazem sentir cada vez mais, e serão devastadoras se não mudarmos a prática da agricultura.

A natureza, ao longo de bilhões de anos, evoluiu um sofisticadíssimo sistema vivo de condicionamento do conforto ambiental. Biodiversidade é o outro nome para competência tecnológica na regulação climática. A maior parte da agricultura tecnificada adotada pelo agronegócio é pobre em relação à complexidade natural. Ela elimina de saída a capacidade dos organismos manejados de interferir beneficamente no ambiente, introduzindo desequilíbrios e produzindo danos em muitos níveis.


Como aliar agricultura e pecuária à preservação de florestas e outros ecossistemas? Como o novo Código Florestal brasileiro se insere nesse contexto?

Antonio Donato Nobre - Extensa literatura científica mostra muitos caminhos para unir com vantagens agricultura, criação de animais e a preservação das florestas e de outros importantes ecossistemas. Esse conhecimento disponível assevera não haver conflito legítimo entre proteção dos ecossistemas e produção agrícola. Muito ao contrário, a melhor ciência demonstra a dependência umbilical da agricultura aos serviços ambientais providos pelos ecossistemas nativos.

Em 2012, contrariando a vontade da sociedade, o congresso revogou o código florestal de 1965. A introdução de uma nova lei florestal lasciva e juridicamente confusa já está produzindo efeitos danosos, como aumentos intoleráveis no desmatamento e a eliminação da exigência, ou o estímulo à procrastinação, no que se refere à recuperação de áreas degradadas. Mas a proteção e recuperação de florestas tem direto impacto sobre o regime de chuvas.

Incrível, portanto, que a agricultura, atividade que primeiro sofrerá com o clima inóspito que já bate às portas do Brasil, tenha sido justamente aquela que destruiu e continua destruindo os ecossistemas produtores de clima amigo. Enquanto estiver em vigor essa irresponsável e inconstitucional nova lei florestal, a degradação ambiental somente vai piorar.


De que forma o conhecimento mais detalhado sobre as formas de vida, e a relação entre elas, em florestas, como a amazônica, pode inspirar formas mais eficientes de produção de alimentos e, ao mesmo tempo, minimizar impactos ambientais?

Antonio Donato Nobre - A biomimética é uma nova área da tecnologia que copia e adapta soluções engenhosas encontradas pelos organismos para resolver desafios existenciais. Janine Benyus, a pioneira popularizadora desse saber, antes ignorado, costuma dizer que os designs encontrados na natureza são resultados de 3,8 bilhões de anos de evolução tecnológica. Durante esse tempo, somente subsistiram soluções efetivas e eficazes, que de saída determinaram a superioridade da tecnologia natural.

Ora, a agricultura precisa redescobrir a potência sustentável e produtiva que é o manejo inteligente de agroecossistemas inspirados nos ecossistemas naturais, ao invés de se divorciar deste vasto campo de conhecimento e soluções, como fez com seus agrossistemas empobrecidos, envenenados e que exploram organismos geneticamente aberrantes.

Qual o papel do solo na “composição da equação do clima” no planeta? Em que medida o desequilíbrio do solo pode influenciar nas mudanças climáticas?

Antonio Donato Nobre - Microrganismos e plantas têm incrível capacidade para adaptar-se ao substrato, seja solo, sedimento ou mesmo rocha. Essa adaptação gera simultaneamente uma formação e condicionamento do substrato, o que o torna fértil para a vida vicejar ali. O metabolismo dos ecossistemas, incluindo sua relação com o substrato, tem íntima relação com os ciclos globais de elementos químicos. A composição e funcionamento da atmosfera depende, para sua estabilidade dinâmica, portanto, para o conforto e favorecimento da própria vida, do funcionamento ótimo dos ecossistemas naturais.

Na equação do clima, os ecossistemas são os órgãos indispensáveis que geram a homeostase ou equilíbrio planetário. A agricultura convencional extermina aquela vida que tem capacidade regulatória, mata o solo, fator chave para sua própria sustentação, e introduz de forma reducionista e irresponsável nutrientes hipersolúveis, substâncias tóxicas desconhecidas da natureza e organismos que podem ser chamados de Frankensteins genéticos.

Todos estes insumos tornam as monoculturas do agronegócio sem qualquer função reguladora para o clima, e muito pior, devido à pesada emissão de gases-estufa e perturbações as mais variadas nos ciclos globais de nutrientes, a agricultura tecnificada é extremamente prejudicial para a estabilidade climática.


Desde a perspectiva do antropoceno , como avalia a relação do ser humano com as demais formas de vida do planeta hoje? Qual o papel da tecnologia e da ciência nessa relação?

Antonio Donato Nobre - Esta nova era foi batizada de antropoceno porque os seres humanos tornaram-se capazes de alterações massivas na delgada película esférica que nos permitiu a existência e nos dá abrigo. O maior drama da ocupação humana do ambiente superficial da Terra é que tal capacidade está destruindo o sistema de suporte à vida, sistema esse dependente 100% de todas demais espécies as quais o ser humano tem massacrado em sua expansão explosiva.

Infelizmente, na expansão do antropoceno, o conhecimento científico tem sido apropriado de forma gananciosa por mentes limitadas e arrogantes, e empregado no desenvolvimento sinistro de tecnologias e engenharias que por absoluta ignorância tornaram-se incapazes de valorizar o capital natural da Terra. Este comportamento autodestrutivo tem direta relação com a visão de ganho em curto prazo e a ilusão de poder auferida na aplicação autista de agulhas tecnológicas.


Em que medida a aproximação entre ciência e saberes indígenas pode contribuir para um novo caminho em termos de preservação do planeta e produção de alimentos?

Antonio Donato Nobre - Cada pesquisador sincero, inteligente e com mente aberta deve reconhecer a máxima milenar da sabedoria socrática: "somente sei que nada sei". O conhecimento verdadeiro e sem limites internos impõe uma postura sóbria e humilde diante da enormidade da complexidade do mundo e da natureza. Hoje, a ciência mais avançada dá inteiro e detalhado suporte ao saber ancestral de sociedades tribais, que perduraram por milênios. Descer do salto alto da arrogância que fermentou graças ao individualismo permitirá reconhecer essa sabedoria básica de sustentabilidade, preservada no saber indígena.

Para a ciência, a aprender com o saber nativo está a veneração pela sabedoria da Mãe Terra; a intuição despretensiosa que capta o essencial da complexidade em princípios simples e elegantes; e sua capacidade holística e lúdica de articular a miríade de componentes do ambiente em uma constelação coerente e funcional de elos significativos.


De que forma a tecnociência e a tecnocracia impactam na forma de observar o planeta? O que isso significa para a humanidade?
Antonio Donato Nobre - A ciência é esta fascinante aventura humana na busca do conhecimento, evoluída aceleradamente a partir do renascimento na Europa. Muitas são suas virtudes e incríveis suas aplicações. No entanto, tais brilhos parecem infelizmente vir acompanhados quase sempre de alucinantes danos colaterais, nem sempre reconhecidos como tal. Na ciência, que gera o conhecimento básico; na tecnologia, que aplica criativamente esse conhecimento; e na engenharia, que transforma conhecimento em realidade, grassa uma anomalia reducionista que permite a hipertrofia de soluções pontuais, desconectadas entre si e do conjunto.

Tal abordagem gera soluções autistas que não se comunicam, tumores exuberantes cuja expansão danifica tudo que está em volta. Assim, a tecnociência olha o mundo com um microscópio grudado em seus olhos, vê pixel, mas ignora a paisagem. Abre caminhos para que ânimos restritos se apropriem de conhecimentos parciais e destruam o mundo. É preciso remover os microscópios dos olhos, olhar o conjunto, perceber as conexões e, assim, aplicar o conhecimento de forma sábia e benéfica.





De que forma conceitos como a Ecologia Integral, presentes na Encíclica Laudato Si’ , do papa Francisco, contribuem para o desenvolvimento de uma visão sistêmica do ser humano sobre o planeta? Qual a importância de uma perspectiva multidisciplinar acerca da temática ambiental?

Antonio Donato Nobre - Ecologia Integral deve significar o que o nome diz. Aliás, se não for integral não pode ser denominada ecologia. Isso porque na natureza não existe isolamento, cada partícula, cada componente, cada organismo e cada sistema interage com os demais, sob o sábio comando das leis fundamentais. Por isso a ação humana pode gerar um acorde harmonioso na grande sinfonia universal, ou — se desrespeitar as leis — tornar-se fonte de perturbação e destruição.

Mais importante do que ser multidisciplinar é ser não-disciplinar, isto é, integrar e dissolver as "disciplinas" em um saber amplo e articulado, sem fronteiras artificiais e domínios de egos. A ciência verdadeira é aquela oriunda do livre pensar, do profundo sentir e do intuir espontâneo. A busca da verdade está ao alcance de todas as pessoas, não é nem deveria ser território exclusivo dos iniciados na ciência. Todos somos dotados da capacidade de inquirir e temos como promessa de realização o dom da consciência. Cientistas são facilitadores, e como tal deveriam servir aos semelhantes com boa vontade, iluminando o caminho do conhecimento, guiando na direção do saber.


Como avalia a agroecologia no Brasil hoje? O que a ciência e a tecnologia oferecem em termos de avanços para esse campo?

Antonio Donato Nobre - Agroecologia, agrofloresta sintrópica, sistemas agroflorestais, agricultura biodinâmica, trofobiose, agricultura orgânica, agricultura sustentável etc. compõem um rico repertório de abordagens que convergem na aspiração de emular em agroecossistemas a riqueza e funcionamento dos ecossistemas naturais. Uma parte dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos autistas de até então pode ser aproveitada para essa nova era de agricultura produtiva, iluminada, respeitadora, harmônica e saudável.

É preciso, porém, que o isolamento acabe, que os conhecimentos sejam transparentes, integrados, articulados, simplificados e recolocados em perspectiva. Se as agulhas tecnológicas foram danosas, como os transgênicos, por exemplo, ainda assim serão úteis para sabermos o que "não" fazer. Na compreensão em detalhe das bases moleculares da vida, abrindo portais para consciência sobre a complexidade astronômica existente e atuante em todos os organismos, a humanidade terá finalmente a prova irrefutável para o acerto das abordagens holísticas e ecológicas.


Deseja acrescentar algo?

Antonio Donato Nobre - É preciso iluminar e revelar a imensa teia de mentiras criada em torno da revolução verde com seus exuberantes tumores tecnológicos. As falsidades suportadas por corporações, governos, mídia e educação bitoladora desde a mais tenra idade, implantaram um sistema mundial de dominação que, literalmente, enfia goela abaixo da humanidade um menu infernal de alimentos portadores de doenças.

Esse triunfante modelo de negócio não se contenta em somente alimentar mal, o faz via quantidades crescentes de produtos animais, os quais requerem imensas áreas e grandes quantidades de água e outros insumos para serem produzidos.

Com isso a pegada humana no planeta torna-se destrutiva e insuportável, e a consequência já se faz sentir no clima como falência múltipla de órgãos. Apesar disso, creio que ainda temos uma pequena chance de evitar o pior se, como humanidade, dermos apoio irrestrito para a busca da verdade.

Precisamos de uma operação Lava Jato no campo, e a ciência tem todas as ferramentas para apoiar esse esforço de sobrevivência.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Registro para a História - estrutura da sacanagem 2005-2016



por Maria Ines Nassif, na Carta Maior
 

A estratégia do golpe institucional, em 2016, com papel ativo do baixo clero do Legislativo e de instâncias judiciárias (o juiz de primeira instância Sérgio Moro e o Supremo Tribunal Federal), e ação publicitária dos meios de comunicação tradicionais (TV Globo e a chamada grande imprensa) começou a ser desenhada em 2005 no chamado Escândalo do Mensalão.

Um ano antes das eleições presidenciais que dariam mais um mandato ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o país foi sacudido por revelações de que o PT usara dinheiro de caixa dois de empresas para pagar as dívidas das campanhas das eleições municipais do ano anterior, suas e de partidos aliados. O tesoureiro do partido, Delúbio Soares, era o agente do partido junto a empresários e a uma lavanderia que até então operava com o PSDB de Minas, a agência de publicidade DNA, de Marcos Valério. Delúbio tornou-se réu confesso. Outro dirigente do partido, Sílvio Pereira, foi condenado por receber um Land Rover de presente de um empresário.

Em torno do episódio – crime de captação de caixa dois pelo partido que está no governo e recebimento de presentes em troca de favores – se iniciaria a maior ofensiva institucional contra um partido político jamais ocorrida em períodos democráticos do país. Toda a máquina midiática tradicional foi colocada a serviço de provar – com fatos amplificados, versões ou falsificações – que o governo de Lula estava corroído pela corrupção, que o PT aparelhara a máquina pública para auferir ganhos desonestos para o partido ou para os seus aliados, que o governo corrompera os aliados – ironia das ironias, os “corrompidos”, os partidos da base aliada, eram o PMDB, o PTB, o PP, o PR.... – com mesadas para os parlamentares, destinadas a garantir as maiorias em plenário necessárias para aprovar matérias de interesse do Executivo.

O termo “mensalão” foi criado nessa jogada de marketing, destinada a transformar um escândalo de caixa dois, no qual todos os partidos estavam envolvidos (a lavanderia de Marcos Valério não tinha restrições ideológicas à adesão de qualquer um deles), em um modo peculiar de corrupção do PT, a compra direta do parlamentar, sem que em nenhum momento houvesse sido provado o pagamento regular a deputados e senadores da base aliada. Afinal, o dinheiro da lavanderia de Marcos Valério foi direto para o caixa dois de outros partidos políticos, no período pós-eleições municipais – e o “denunciador” do mensalão, o presidente do PTB, Roberto Jefferson, chegou a confessar, quando se viu em tribunal, que dinheiro era para pagamento de dívidas de campanha.

Para ser corrupção, todavia, era preciso que se caracterizasse o dinheiro do caixa dois como originário dos cofres públicos. O Ministério Público, então presidido pelo procurador Antônio Fernando de Souza, hoje advogado do deputado tardiamente afastado da presidência da Câmara, Eduardo Cunha, inventaria a ficção de um dinheiro desviado da empresa Visanet pelo diretor de Marketing do Banco do Brasil, Henrique Pizzolatto. A Visanet era uma empresa privada, do grupo internacional Visa, e esse dinheiro foi tratado indevidamente como produto de desvios do Banco do Brasil, estatal, num julgamento na maior instância judiciária do país, que não poderia se dar ao luxo de um erro deste tamanho.

Pizzolatto não tinha autonomia para assinar uma única ação de marketing sozinho. A “prova” que Souza apresentaria contra ele, aceita pelo relator Joaquim Barbosa, do STF, foi assinada por outras três pessoas e submetida a um comitê, e depois à diretoria de um banco – a ação publicitária, ao final, fora autorizada por mais de uma dezena de pessoas. Não existia possibilidade de que Pizzolatto tivesse desviado o dinheiro: para isso, teria que ter mais de dez cúmplices, e ainda assim atuaria sobre dinheiro privado, que não era do Banco do Brasil.

O Supremo Tribunal Federal, nas vésperas da eleição de 2014, julgou midiaticamente o caso e perpetrou barbaridades jurídicas nunca antes vistas na história desse país. O relatório do ministro Joaquim Barbosa transformou um crime de captação de caixa dois em desvio de dinheiro público, e jogou as provas de que o dinheiro definitivamente não havia sido desviado do Banco do Brasil para um inquérito paralelo. Por fim, decretou segredo de Justiça. Sequer os advogados de defesa tiveram acesso a elas. Também não tiveram acesso a provas da origem do dinheiro lavado por Marcos Valério: a transferência de fartos recursos do caixa de um empresário interessado em decisões de governo (que não foram tomadas, inclusive por oposição do ministro José Dirceu, condenado sem provas), repassados aos partidos da base aliada. O empresário em questão chegou a aparecer no início do escândalo na mídia e sumiu como um fantasma das páginas dos jornais e dos inquéritos policiais e judiciais.

Com a opinião pública dominada por uma campanha diária de nove anos, o STF legitimou sua decisão de avalizar as conclusões de Barbosa, acatou o estranho instrumento do “domínio do fato” e, a partir disso, a pretexto de ouvir a voz das ruas, aceitou as barbaridades que seriam praticadas pelo Ministério Público e pela justiça de primeira instância na Operação Lava Jato, nos últimos três anos.

O STF transformou um crime de caixa dois em crime de corrupção, de formação de quadrilha, etc. etc. sem provas. Dos réus que foram condenados, alguns cometeram crimes, mas não os que os levaram para a prisão; outros eram inocentes de quaisquer crimes e foram condenados assim mesmo. Poucos foram condenados por crimes que efetivamente cometeram. A Agência DNA foi punida por atuar como lavanderia do PT e dos partidos aliados, mas tardiamente responsabilizada pelo Mensalão do PSDB (que vai deixar todos os implicados soltos até a prescrição do crime, o mesmo que levou o PT e seus aliados à cadeia). O deputado José Genoíno, então presidente do PT, foi preso por um empréstimo efetivamente feito pelo partido e quitado no prazo estipulado em contrato.

Dirceu foi eleito o vilão nacional e encarcerado – e de novo encarcerado no Lava Jato – sem nenhuma prova contra si. E Pizzolatto, depois de uma fuga sensacional, amarga cadeia porque, junto com um comitê de dezenas de pessoas, autorizou uma campanha publicitária do Banco do Brasil paga pela Visa Internacional. Alguns membros do mesmo comitê respondem a um processo na primeira instância que está esquecido na gaveta de um juiz da capital federal.

Desde então, o Ministério Público Federal e o Supremo Tribunal Federal se constituem em peças fundamentais nas articulações contra os governos petistas, iniciadas em 2005 e que tiveram desfecho no golpe institucional deste 2016. Eduardo Cunha e Michel Temer não existiriam sem a cumplicidade das duas instituições e a inexplicável ingenuidade do PT: o mesmo partido que em determinado momento se dispôs a jogar com as armas da política tradicional, indo à cata de dinheiro de caixa dois das empresas para financiar campanhas eleitorais, não entendeu a natureza da elite que o financiava, nem a impossibilidade de acordo com a política tradicional e com instituições de vocação conservadora que mantiveram seu perfil conservador e corporativo, apesar de seus membros terem sido majoritariamente escolhidos pelos presidentes petistas.

O PT não entendeu que jogava as suas fichas, a nível institucional, numa política de conciliação de classes num quadro onde as próprias políticas do governo davam as bases para uma acirrada luta de classes, que se tornou explícita quando o golpe começou a mostrar sua cara. Essa foi uma contradição inerente aos governos petistas.

Na campanha eleitoral de 2014, a presidenta Dilma Rousseff venceu no segundo turno porque rapidamente as forças de esquerda se articularam em torno dela, em reação à onda de comoção criada pela direita, que se utilizou do clima proporcionado pelo julgamento político levado a termo pelo Supremo Tribunal Federal (STF) poucos meses antes do início do processo eleitoral, no chamado caso do mensalão; e pela entrada em cena do juiz de primeira instância Sérgio Moro que, aproveitando-se das licenças jurídicas a que se permitiu o STF em 2013, fez o seu próprio tribunal político, fechando o cerco ao PT por um esquema de corrupção na Petrobras que – basta ler com atenção as delações premiadas – era enraizado na empresa e mantinha em diretorias protegidos de partidos que estavam aliados aos governos petistas depois de 2002, mas igualmente aos governos anteriores, do PSDB e do PMDB e do governo Collor.

Já são 11 anos de massacre, com armações com grande similaridade.

O Ministério Público encontra um escândalo qualquer e começa a investigar, considerando provas basicamente de um lado. Sem consistência para pedir um inquérito, vaza os dados para um órgão de imprensa, que os publica como grande escândalo, desconhecendo o fato de que as provas não existem. Imediatamente, a matéria do jornal, baseada em vazamentos do próprio MPF, vira o indício que o MPF usa para pedir ao juiz – a Moro, ou ao STF, ou a algum outro – para abrir o inquérito.

No caso de Moro, seguem-se prisões sem base legal e coações à delação premiada. Chovem no Youtube reproduções de interrogatórios presididos pelo próprio juiz Moro onde ele deixa claro ao interrogado – normalmente um velho com problemas de saúde -- que será libertado apenas se delatar; e de advogados protestando contra ele por não considerar sequer uma prova apresentada pela defesa antes de condenar um implicado. Nesses vídeos, é claro que Moro está investido da intenção de condenar antes de ouvir a defesa. Para ele, não existem inocentes em um campo político. No outro campo político, suas intenções são dóceis. O justiceiro é bastante permissivo com o campo político da direita.

Nada justifica que um juiz de um tribunal de exceção sobreviva numa democracia com amplos poderes, acima daqueles que a Constituição lhe confere, sem a aquiescência da maior instância judiciária. Moro existe e faz o que quer porque o sistema jurídico está contaminado pelo partidarismo. Moro não existiria sem um Barbosa que o precedesse. Moro não existiria sem o ministro Gilmar Mendes, que impunemente transformou o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em palanques contra os governos do PT. Não existiria sem o ministro Dias Toffoli, que se tornou moleque de recados de Mendes; sem a tibieza das duas ministras mulheres; sem o conservadorismo ideológico de Teori Zavascki (que contamina o seu discernimento jurídico); sem a falsa objetividade jurídica de Celso Melo; sem a frouxidão de Edson Fachin; sem a excessiva timidez de Ricardo Lewandowisk.

A Justiça não evitou o golpe porque é parte do golpe. O Ministério Público não reagiu ao golpe porque era um dos conspiradores.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Realidade fundiária e estrangeirização de terras no Brasil


entrevista de Bernardo Mançano Fernandes (*) à Leslie Chaves e Patricia Fachin, do IHU



IHU On-Line – Fazendo um balanço histórico dos dados dos relatórios DATALUTA produzidos ao longo de 16 anos, quais mudanças destacaria como mais significativas em relação à composição da estrutura fundiária brasileira?

Bernardo Mançano Fernandes - É muito difícil analisar as mudanças na estrutura fundiária brasileira porque as duas fontes que temos trazem dados indefinidos. A tabela 6 do relatório DATALUTA mostra que, entre 1998 e 2014, a área das propriedades rurais saltou de 415 para 740 milhões de hectares. E o índice de Gini aumentou de 0.838 para 0.860. Estes números necessitam ser conferidos para que possamos conhecer a verdadeira área dessas propriedades. O censo agropecuário de 2006 informa que há uma área de mais de 300 milhões de hectares com outras ocupações, sem definir quais. Quando o Estado não tem informações bem definidas sobre seu território, configura-se uma situação de precariedade dos registros que impede análises mais aprofundadas da questão fundiária e, portanto, da questão agrária. A minha hipótese é que a manutenção desta precariedade é intencional, porque gerar a indefinição é uma forma de impedir o conhecimento mais aprofundado da estrutura fundiária e a criação de políticas de desconcentração da terra. Esta indefinição, com relação ao número real de propriedades e seus usos, produz questões que precisam ser respondidas para que tenhamos controle sobre o território nacional onde estão os territórios ocupados pelo latifúndio, pelo agronegócio, pelo campesinato e as terras em poder do Estado.

Por exemplo, por que as experiências de reforma agrária no Brasil não modificaram a estrutura fundiária? Inclusive, alguns estudiosos dizem que não há reforma agrária no Brasil, porque partem do pressuposto que a reforma agrária tem que desconcentrar a estrutura fundiária. Mas esta premissa pode impedir a compreensão num país como o Brasil, que tem uma estrutura fundiária indefinida. O relatório DATALUTA mostra que entre 1979 e 2014 nada menos que 81.950.074 hectares foram destinados à criação de 9.337 assentamentos, onde estão assentadas 1.110.753 famílias. A área total dos assentamentos representa 9,5% do território brasileiro. Há vários fatores que explicam por que este montante não impactou a estrutura fundiária: 1) a maior parte das terras destinadas aos assentamentos é resultado de regularização fundiária e não de desapropriação; 2) a fronteira agrícola ainda está aberta, portanto continua a expansão de áreas agrícolas sobre áreas de florestas; 3) o cadastro de terras é declaratório e não há fiscalização, o que dificulta saber o quanto representa de fato; 4) o censo agropecuário não conseguiu até o momento captar as áreas reformadas de fato, o que seria uma possibilidade de análise pelos estabelecimentos rurais.


Campesinato brasileiro

Estes números revelam que nos últimos 35 anos o campesinato brasileiro conquistou mais de 80 milhões de hectares. Não há estudos sobre outros países onde o campesinato tivesse conseguido resultado similar. Isto coloca o Brasil num patamar diferenciado, pois não permitiu a diminuição da participação da agricultura camponesa no desenvolvimento territorial em disputa com o agronegócio. Por meio da luta pela terra, os movimentos socioterritoriais têm mantido o controle territorial em torno de 26% das terras agrícolas. Muito diferente de Argentina e Chile, onde o campesinato foi quase exterminado, onde controlam algo em torno de 5% das terras, ou de Peru, Bolívia e Equador, onde o campesinato indígena controla a maior parte das terras agriculturáveis.

Mas o que significa esta conquista no Brasil? Aqui também alguns estudiosos questionam os resultados do desenvolvimento da agricultura camponesa, como por exemplo: produção, renda, tecnologia, etc. O problema desses críticos é que eles usam como referência o modelo do agronegócio, que é hegemônico e controla a política de desenvolvimento no campo em todo o mundo, para analisar o modelo de produção camponês, que não tem estas características. É essencial enfatizar que as corporações transnacionais controlam os governos que não têm autonomia para definir os programas de desenvolvimento agrícola. Resta aos camponeses um papel essencial, mas subalterno. Essencial porque eles produzem os principais alimentos da nossa mesa, mas recebem muito pouco e, portanto, continuam pobres. Mesmo entre os camponeses, a produção também é concentrada, em torno de 15% produzem 80% do valor bruto da produção, enquanto 85% produzem o resto.

A situação de pobreza do campesinato como resultado da subalternidade ao mercado capitalista precisa ser superada para o desenvolvimento da agricultura brasileira. Para o desenvolvimento do campesinato, é fundamental construir políticas de formação agroecológica, aproveitando ao máximo as experiências em construção e a ampliação de mercados institucionais, além da criação de cotas do mercado convencional para a agricultura familiar, investimento em pesquisa e tecnologia para agricultura camponesa, criação de infraestrutura, etc. Sem essas condições, a agricultura camponesa continuará subalterna ao agronegócio. Evidente que o agronegócio não tem interesse na superação da subordinação do campesinato, portanto o Estado é a única instituição capaz de criar políticas que garantam a autonomia da agricultura familiar.

IHU On-Line – Quais são as dimensões das desigualdades socioterritoriais atualmente? Como os movimentos do campo têm se mobilizado?

Bernardo Mançano Fernandes - As dimensões da desigualdade atingem o desenvolvimento em sua totalidade. Por exemplo, a população rural é mais pobre que a urbana, por conseguinte tem menos acesso à educação, saúde, moradia, transporte, infraestrutura, equipamentos, serviços, etc. A inexistência dessas condições está associada a uma compreensão de que para acessá-las é preciso ir para a cidade. Os movimentos do campo têm se mobilizado para mudar esta visão e reivindicam todas as dimensões do desenvolvimento. Para qualificar e aumentar a produção agropecuária, é necessário mais moradias, escolas, universidades, mercados, indústrias, pequenos hospitais, transporte, as condições básicas para a dignidade da população do campo. Mas estes recursos têm que estar no campo para o desenvolvimento territorial rural, reafirmando que o campo não é somente lugar da produção agropecuária, é espaço de vida na sua plenitude, assim como a cidade.


Gestão dos interesses

Para construir essas condições, o governo precisa ter controle sobre o cadastro da estrutura fundiária, sobre as políticas agropecuárias e criar um conjunto de políticas públicas que atendam todas as dimensões do desenvolvimento territorial. Isso significa uma gestão a partir de interesses mais amplos que os interesses do agronegócio. Construir essa compreensão é fundamental para superar a situação de pobreza dos pequenos agricultores e acelerar a reforma agrária. A falsa compreensão que se tem hoje é que os interesses do agronegócio são os mesmos do campesinato. O agronegócio não é somente uma palavra, é o modelo de desenvolvimento da agricultura capitalista. Os interesses dos camponeses fazem parte de um modelo de desenvolvimento que não inclui a produção monocultora para exportação e tampouco o uso de agrotóxicos. O agronegócio não tem interesse em que as pessoas tenham terra e vivam no campo. Esta condição é vista como situação de atraso.

O agronegócio acredita que pode controlar toda a produção agropecuária e eliminar o campesinato. Ele quase eliminou o campesinato em países como a Inglaterra, Argentina e Chile. A eliminação do campesinato significa que a fonte dos alimentos será somente as grandes corporações. Esta condição é inviável. Tanto na Europa como na América do Norte, a população tem se organizado para produzir seu próprio alimento, com qualidade, livre de venenos. Acredito que a disputa pela comida está se tornando tão forte quanto a disputa pela terra. E o agronegócio domina estas duas frentes, mas o campesinato, que não é tão poderoso quanto ele, é capaz de criar outro modelo para se contrapor. Ao mesmo tempo que o agronegócio é poderoso, tem seu ponto fraco em seu próprio modelo de produção: ele não consegue produzir sem o uso intensivo de veneno. E cada vez mais fica refém de seu próprio veneno. A mobilização dos movimentos camponeses tem que ser então pela agroecologia. Este é seu ponto forte. Não há dúvidas que, cada vez mais, a população vai preferir comida saudável do que comida envenenada.

Portanto, mesmo com a precariedade de dados e as imensas desigualdades, a perspectiva é positiva, porque tratar da terra e da comida é tratar da vida, do futuro. Temos que fomentar o debate sobre a qualidade de vida, da comida e da terra. Isto é parte da questão agrária. É isto que o capitalismo agrário não quer debater. Porque o agronegócio não consegue produzir comida saudável e acabar com as desigualdades. Estes são temas estranhos a ele. O máximo que o agronegócio pode fazer é explorar o campesinato através da subordinação da produção, como o fumo, a laranja, a soja, a cana, etc. E explora porque o campesinato tem a terra, e o agronegócio não tem interesse em produzir determinadas culturas. Quando controla a terra e tem interesse, o agronegócio verticaliza a produção e elimina o campesinato.

A dimensão que está na essência da produção da desigualdade é a renda capitalizada da terra, incorporada pelo capitalismo quando o agricultor vende sua produção para as corporações. Embora esta seja a questão central da desigualdade, os capitalistas não querem debater, porque este processo é da natureza do capitalismo. Logo, não há saída para o campesinato dentro do mercado capitalista. Por esta razão o campesinato vem sendo exterminado lentamente em todo o mundo. Ele resiste, se recria, como é o caso do Brasil, mas continua sendo destruído. A criação de mercados institucionais como o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE foi um alento para muitos camponeses brasileiros. Estas políticas tiveram efeito positivo e serviram de inspiração para países da América Latina e África.

IHU On-Line – De que forma a violência no campo está atrelada à estrutura fundiária brasileira?

Bernardo Mançano Fernandes - A classe mais atrasada do Brasil é a latifundiária. Mas também é uma das mais poderosas. Uma forma de sua materialização é a bancada ruralista no Congresso Nacional. Outra expressão foi a União Democrática Ruralista – UDR, que em nome da defesa da propriedade privada articulou recursos que foram utilizados na defesa armada na intensificação dos conflitos fundiários nas décadas de 1980 e 1990. A UDR não morreu, ela está em quarentena e pode ressurgir a qualquer momento. Um país com estrutura fundiária concentrada e aumento das desigualdades tem como resultado a luta pela terra como forma de sobrevivência. Com o crescimento do número de ocupações, aumenta a violência. Temos assim dois tipos de violência: enquanto a renda capitalizada da terra é a forma econômica, a estrutura fundiária concentrada é a forma territorial de violência contra o campesinato. Estou me referindo a diferentes tipos de camponeses, como os posseiros e os sem-terra, que lutam cotidianamente para ter acesso à terra. São eles que estão morrendo na infinita luta pela terra. Embora a concentração da estrutura fundiária seja secular, não se tem construído possibilidades de solução, porque os ruralistas controlam os três poderes. Quando me refiro aos ruralistas, não estou me limitando à classe latifundiária, estou incluindo também a classe capitalista.

O agronegócio aliou latifúndio e capital. Uma expressão desta aliança é a Kátia Abreu como ministra da Agricultura. Esta coligação começou em meados do século XX nos Estados Unidos e continua se expandido pelo hemisfério Sul, tornando-o um conjunto de repúblicas de commodities: banana, soja, cana-de-açúcar, laranja, etc. A produção de commodities é feita em grande escala com intenso uso de agrotóxico, para exportação, denominada secularmente de plantation. É, ao mesmo tempo, uma forma intensiva de exploração dos recursos naturais, como terra, água, florestas, por meio do controle da concentração fundiária e de eliminação dos povos indígenas, quilombolas, camponeses. É uma forma de atrelar a violência da concentração da estrutura fundiária (forma territorial) com a violência do capital (forma econômica). Portanto, não há diferença entre a violência praticada pelo latifúndio e a praticada pelo agronegócio: ambos matam e aniquilam os povos que resistem à sua territorialização. Este processo de desterritorialização dos povos do campo e das florestas está se intensificando em todo o mundo.


A questão agrária no século XXI

O século XXI trouxe novos elementos da questão agrária: a mudança da matriz energética tem levado à expansão da produção de agrocombustíveis e à crise alimentar. Árabes, chineses, indianos, argentinos e brasileiros se somaram aos norte-americanos e europeus na disputa por territórios no hemisfério Sul para a produção de commodities energéticas, fibras e alimentares. Este processo consolida o modelo do agronegócio que unificou um complexo de sistemas: agrícola, pecuário, industrial, comercial, financeiro, tecnológico e ideológico. Esta consolidação coloca o latifúndio como um aliado fundamental, pois é a base territorial do processo. As terras ociosas tornam-se altamente produtivas no mundo da competitividade e do empreendedorismo. Terras griladas na região do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, são usadas para a produção de cana-de-açúcar pela Odebrecht, recém chegada ao agronegócio. E denomina a usina de álcool de “Conquista do Pontal”, numa clara provocação ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, que tem atuado na região disputando as terras griladas.

Há estudiosos que defendem que não é mais necessário desconcentrar a estrutura fundiária para o desenvolvimento da agricultura, pois o modelo do agronegócio necessita de grandes extensões de terra. Naturaliza-se a concentração da terra na defesa de um projeto de desenvolvimento hegemônico. O poder dos latifundiários e dos empresários capitalistas que fazem parte do agronegócio determina as eleições e as políticas governamentais em todas as escalas. Nos governos Lula e Dilma foram criadas políticas públicas que escaparam a este modelo. Não foi uma concessão do agronegócio, foi uma disputa por modelos de desenvolvimento. A criação de um projeto de desenvolvimento do campesinato, a partir das suas referências e modos de produção, está em construção no Brasil através da Via Campesina e é a principal forma de resistência contra o poder violento do agronegócio.

IHU On-Line – Neste ano foram incluídos no relatório DATALUTA dados sobre a estrangeirização de terras. Que papel a estrangeirização de terras tem ocupado na estrutura fundiária brasileira? Qual é a importância de inclusão desta categoria no relatório?

Bernardo Mançano Fernandes - A importância de incluir a categoria estrangeirização no relatório está na necessidade de atualizar os conhecimentos sobre a questão agrária. Quando começamos as pesquisas, em 1998, as ocupações de terra eram a categoria central da questão agrária. Depois fomos incorporando outras categorias, como os movimentos e as manifestações. Estamos pesquisando a estrangeirização há sete anos para conhecer como tem impactado a estrutura fundiária brasileira, mas, como salientamos, não há dados sistematizados para essa análise. Estamos construindo uma metodologia de pesquisa para poder organizar este banco de dados.

Estrangeirização de terra não é um processo recente, mas se intensificou a partir da primeira década deste século. Estrangeirização da terra significa o controle de extensões territoriais e seus recursos naturais, por empresas e governos estrangeiros, para a produção de commodities visando atender aos interesses dos investidores em detrimento dos interesses e necessidades da população impactada. É um novo elemento da questão agrária do século XXI. Muitos dos investidores são fundos de pensão de países ricos que procuram reproduzir o capital por meio da produção de commodities. A geração de riqueza para um grupo social de um país rico é feita no território de um país pobre que tem sua população expropriada e ou impedida de usar esse território.


Dificuldades

A escassez de fontes é o principal desafio para pesquisar a estrangeirização. A metodologia que construímos até o momento permite cadastrar noventa empresas e fundos relacionados, país de origem do capital e as commodities produzidas. É uma aproximação, não temos referências do que esses dados representam do total do processo, porque não há dados que permitam esta análise. Esta escassez de dados é intencional, é uma forma de impedir o conhecimento sobre os fatos. O que implica na soberania do país, evidentemente. Enquanto o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos tem o controle sobre sua estrutura fundiária, nós precisamos consultar o Google. Neste caso o Google tornou-se uma fonte de informações.

A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia publicou carta aberta na qual defende que é preciso “fomentar um processo de planejamento e gestão do território brasileiro que leve em consideração a necessidade de frear o desmonte e o descrédito das bases informacionais dos principais organismos geradores de dados oficiais, a exemplo da cartografia oficial, que está cada vez mais desatualizada e com conflitos institucionais de atribuição. O Google não pode substituir a cartografia de Estado do país continental”.

Com o banco de dados que estamos construindo, podemos saber quais são as empresas e onde elas atuam e o número de propriedades, mapeando suas presenças no território nacional. Estas empresas estão comprando ou arrendando terras para produção das seguintes commodities: cana-de-açúcar, monocultivo de árvores, soja e milho. As corporações estão predominantemente na faixa do bioma do Cerrado e já instituíram uma região onde têm intensificado a compra de terras, que é a região do Matopiba, formada por partes dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

IHU On-Line – A estrangeirização de terras contribui para o acirramento das disputas territoriais no campo? De que modo?

Bernardo Mançano Fernandes - Sim, as disputas territoriais no campo mudaram na última década. Agora além do latifúndio e dos sem-terra, que sempre disputaram as terras, há as corporações comprando terras e expandido a produção de commodities. Há diferentes tipos de conflitos, desde o impedimento ao acesso à terra, pela aquisição por estrangeiros, ao isolamento de comunidades que estão cercadas pelo monocultivo e são atingidas pela pulverização aérea de veneno. Para os governos, em todas as instâncias, aquisição de terras por estrangeiros significa desenvolvimento, enquanto as populações atingidas são um estorvo para a produção de commodities. A violência que estas comunidades sofrem é naturalizada em nome do agronegócio.

IHU On-Line – Em relação aos históricos movimentos por terra, existem especificidades nas mobilizações de comunidades tradicionais e de pequenos agricultores que lutam por seu território e contra remoções forçadas para a construção de obras de infraestrutura, como as Usinas hidrelétricas?

Bernardo Mançano Fernandes - Sim, são várias frentes de luta: resistir para não perder a terra e lutar para entrar na terra são formas territoriais de resistência. Este processo está em movimento em todo o Brasil por causa dos megaprojetos que estão sendo construídos. Temos cadastrados 126 movimentos que denominamos de movimentos socioterritoriais porque a sua existência está fundada no território. Os movimentos indígenas foram os que mais cresceram em número de ações em defesa de seus territórios. As lutas por resistência na terra têm crescido, enquanto a luta para entrar na terra tem diminuído. Este fato é resultado da estrangeirização da terra que tem desterritorializado povos indígenas e camponeses e impedido o acesso à terra.

Outras frentes de luta são marcadas pelas mobilizações na proposição de políticas públicas para o desenvolvimento territorial. Como não há um plano governamental para os povos do campo e estes ainda não possuem um plano consolidado para o desenvolvimento de seus territórios, as manifestações que registramos revelam a fragmentação e a diversidade das reivindicações: terra, crédito, educação, moradia, infraestrutura, assistência técnica, mercado, tecnologia, etc.

IHU On-Line – Em que consiste o trabalho da Rede DATALUTA? De que forma seus estudos têm contribuído para o tema da questão fundiária no Brasil?

Bernardo Mançano Fernandes - A Rede DATALUTA é formada por dez grupos de pesquisa que estão presentes em todas as regiões brasileiras. Também temos projetos de pesquisa em outros países da América Latina, como a Argentina e a Colômbia. Para a manutenção deste banco de dados com diferentes categorias, é necessário o trabalho cotidiano de dezenas de pesquisadores. O trabalho em rede permite atuar em todas as escalas: local, regional, nacional e internacional e congrega pesquisadores de vários níveis: graduação, mestrado e doutorado, promovendo o intercâmbio de experiências e a criação de um método interpretativo sobre o desenvolvimento do campo. Criamos o debate paradigmático para compreender como diferentes métodos de análise possuem visões diferentes sobre o desenvolvimento da agricultura. Os paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário dominam os modelos interpretativos em todas as áreas do conhecimento.

Os grupos de pesquisa da Rede DATALUTA têm uma posição definida sobre o desenvolvimento do campo, e defendemos a expansão da agricultura camponesa. Entendemos que estes agricultores possuem papel essencial para a produção de alimentos de qualidade e precisam ampliar sua participação nas disputas territoriais e por modelos de desenvolvimento. A hegemonia do agronegócio não se sustenta devido aos problemas que ele mesmo gera: aumento do uso de veneno e das desigualdades sociais. A produção do conhecimento pela Rede DATALUTA é divulgada através da publicação de artigos em revistas nacionais e internacionais, dissertações, teses, boletim DATALUTA (mensal), relatório DATALUTA (anual) e livros que contribuem, por exemplo, para compreender como a questão fundiária está associada a um fundo de pensão americano, cujos beneficiários vivem às custas da expropriação e miséria dos camponeses do hemisfério Sul; que a produção de commodities para exportação aumenta o PIB e a desigualdade, numa política de desenvolvimento dependente.

Nossos estudos têm contribuído para mostrar que terra e território não podem ser separados porque os agricultores não existem sem terra e território. Por isso a renda da terra é uma renda territorial e a sua produção impacta na vida das pessoas. Porque as pessoas são territórios.

IHU On-Line – A partir desses 15 anos de pesquisas sobre os temas ligados à organização fundiária brasileira, que perspectivas traça sobre a situação da questão agrária no país?

Bernardo Mançano Fernandes – Por meio da publicação anual do relatório DATALUTA e da publicação mensal do boletim DATALUTA, temos acompanhado as mudanças conjunturais da questão agrária. Nossas pesquisas têm demonstrado que a questão agrária não é um problema que possa ser resolvido pelos governos. Quero lembrar que a estrutura fundiária concentrada é um dos componentes da questão agrária, mas há outros mais importantes, como a renda capitalizada da terra, por exemplo. Os governos podem minimizar ou intensificar as desigualdades criadas pela questão agrária através de políticas públicas.

Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro governo, minimizou a questão agrária com a criação de assentamentos e de créditos agrícolas, mas no segundo governo intensificou a questão agrária com a criminalização da luta pela terra. Como sociólogo filiado ao paradigma do capitalismo agrário, Fernando Henrique Cardoso acredita, ainda hoje, que é possível solucionar a questão agrária com a “integração” dos camponeses ao sistema capitalista. Este é um erro comum dos governos que acreditam que o paradigma do capitalismo agrário possa resolver a questão agrária. Não pode, tanto que este paradigma não entende a questão agrária e a nega. Na realidade, “integração” é subordinação e expropriação, que gera conflitualidades. Paradigmas são modelos teóricos interpretativos dos quais pessoas e instituições se utilizam para criar políticas que gerem as relações necessárias para a transformação das realidades.

Temos escrito que a questão agrária é um problema estrutural do capitalismo. A produção da questão agrária é da natureza do capitalismo. Por essa razão não há solução, mas a procura permanente por solução pelos movimentos e governos e o avanço do capitalismo fazem com que tenhamos diferentes conjunturas agrárias. Tivemos um avanço na conquista da terra entre 1995 e 2010 e hoje está ocorrendo um refluxo da luta pela terra, com o acirramento da violência e aumento da estrangeirização da terra. Aprendemos nestes 15 anos que o problema agrário não é somente um problema dos camponeses, do capitalismo e do Estado, mas é sim um problema de todos nós. Estamos tratando de modelos de organização da sociedade, do ordenamento territorial, da produção de alimentos e da vida.

A sociedade em geral terá de debater qual modelo de desenvolvimento é necessário para o nosso futuro: o agronegócio ou a agroecologia. Estamos convencidos de que eles não são compatíveis e que a conflitualidade é o modo de relação de disputas por território e recursos. Estamos certos de que este debate será feito pelas comunidades urbanas, que podem produzir e fazer parte da produção de alimentos saudáveis, rompendo com a lógica monocultora com uso de veneno, a padronização e artificialização.



(*) Geografo e doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo – USP. Leciona na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp