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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Comercial da Samarco - aprendam cocôzinhos!...


por Wilson Roberto Vieira Ferreira, no Cinegnose

Uma desastrada estratégia de gestão de crise? Ou um exemplo daquilo que o pai das Relações Públicas, Edward Bernays, chamava de “técnica indireta”? O fato é que o comercial da Samarco "É sempre bom olhar para todos os lados" veiculado em horário nobre na TV (que a revista “Meio & Mensagem” chama elogiosamente de “prestação de contas” das medidas de controle de danos ambientais) revoltou muitos internautas. Mas como diria Nick Naylor (o relações públicas do Tabaco no filme “Obrigado Por Fumar”) “Eu não quero convencer você, mas eles!”, diz apontando para as pessoas anônimas que caminhavam ao redor – a Opinião Pública. O comercial da Samarco é uma aula sobre todas as táticas de propaganda que envolvem as chamadas "técnicas indiretas": naturalizações, descontextualizações, inversões de hierarquia e, no final, a cereja do bolo: a canastrice da linguagem audiovisual.


Sobrinho de Freud e considerado o pioneiro das técnicas de relações públicas, Edward Bernays no seu livro Crystallizing Public Opinion (1923) nos oferece um exemplo que abriria a nova era das chamadas “técnicas indiretas” de manipulação da opinião pública: Os proprietários de um decadente hotel consultam um conselho de relações públicas. Eles perguntam como melhorar o prestígio do hotel e incrementar os seus negócios.

Em tempos menos sofisticados, a resposta poderia ser contratar um novo chefe de cozinha, melhorar o encanamento, pintar os quartos, ou instalar um lustre cristalino no saguão de entrada. Mas a técnica dos relações públicas é mais indireta. Eles propõem a celebração do trigésimo aniversário do hotel. Um comitê é formado, incluindo proeminentes banqueiros, a matrona líder da alta sociedade, um advogado famoso, um pastor influente e um ‘evento’ é planejado (digo, um banquete) para chamar a atenção dos distintos serviços oferecidos pelo hotel à comunidade.

A celebração é realizada, são tiradas fotos, a ocasião é amplamente informada e o objetivo é alcançado.

Bernays criou esse paradigma que é seguido até hoje, como podemos ver no inacreditável comercial em TV aberta onde a empresa mineradora Samarco (empresa controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton) mostra as ações que visam minimizar os danos causados pelo rompimento da barragem de Mariana/MG que provocou o maior desastre ambiental brasileiro.


A mentalidade invertida

O comercial estreou no horário mais caro da TV brasileira, no intervalo do Fantástico da TV Globo, e vem sendo apresentado também nos intervalos de telejornais do horário nobre – surpreendente para uma empresa que teve bens bloqueados pela Justiça e adia pagamentos de indenizações alegando que o seguro da empresa não é o suficiente para arcar os custos.

Para além do evidente exemplo do chamado conflito de interesse (Samarco patrocina telejornais que supostamente deveriam ser imparciais sobre notícias que responsabilizam a empresa), o comercial da Samarco é mais um irônico exemplo dessa eufemística “estratégia indireta” que anima as táticas de engenharia de opinião pública.

Por exemplo, a revista Meio & Mensagem chama o comercial de “prestação de contas da Samarco”, num sintoma da mentalidade invertida das estratégias indiretas de RP: se as medidas de controle de danos são reais deveriam ser noticiados como informações nas pautas de telejornais, e não como storytellings nos intervalos comerciais pagos.

A imagem precede a informação, o simulacro se antecipa à realidade numa surpreende inversão platônica em pleno horário nobre.


Inversão da hierarquia da empresa

Nesse mundo invertido do gerenciamento de crise nas Relações Públicas é surpreendente como também é invertida a hierarquia organizacional da empresa – se a crise foi provocada pelos CEOs, diretores, presidentes etc. a partir de decisões alimentadas por dados de planilhas Excel em reuniões fechadas, nada mais lógico do que esconde-los.

Inverta tudo. Ao invés de gente engravatada, mostre em um comercial os funcionários consternados, comovidos, alguns com sentimento de culpa (“mal conseguia trabalhar direito”, fala um funcionário no vídeo), penalizados, preocupados com gatinhos (um patético signo de uma suposta preocupação ambiental da empresa) e se apresentando de braços abertos – e outros, no linguajar corporativo, dizendo que estão “vestindo a camisa”.

Incautos funcionários são colocados como escudos numa filosofia de “é sempre bom olhar para todos os lados”. Em um momento desse inacreditável comercial, um funcionário fala desconsolado em “minimizar os danos que a gente causou!”.

“A gente” é uma mágica expressão de RP que num só golpe esconde hierarquias corporativas, centros superiores de decisão de gestores e CEOs, colocando o rabo de foguete no nível do “chão de fábrica” dos catatônicos funcionários com suas testas franzidas e olhares suplicantes por desculpas.

Como se a Samarco se desculpasse tomando como refém seus próprios funcionários ao afirmar que a empresa gera seis empregos diretos, sugerindo que retalhar a empresa prejudicará a vida dos seus abnegados funcionários.

Assim como Bernays achava que mais importante para incrementar os negócios do hotel eram fotos nos jornais do que contratar um bom chefe de cozinha, também para a gestão de crise da Samarco é melhor mostrar histórias “humanas” de seus funcionários em vídeos publicitários do que implementar medidas reais de impacto que se transformem naturalmente em notícias.


Naturalização e descontextualização

Essa estratégia indireta de RP também produz dois efeitos propagandísticos: naturalizar e descontextualizar crises. Funcionários dizem no comercial que “de repente” acordaram com uma “missão de acolher as pessoas”. Mas como “de repente”, cara pálida! Em poucos segundos a “prestação de contas” da Samarco quer apagar as notícias de que tudo foi uma tragédia anunciada por técnicos especialistas na área de mineração e situar a catástrofe no campo dos terremotos, furacões ou quedas de meteoros.

Diante dos misteriosos desígnios da Natureza e de Deus restaria somente a resposta humana da solidariedade e compaixão – esse é o objetivo ideológico profundo de todo bom storytelling: simplificar acontecimentos social e politicamente complexos em narrativas pessoais melodramáticas e canastronas. Tudo vira uma questão de esforço individual, e não mais de vontade política coletiva.


A canastrice como força de propaganda

Um som de piano ao fundo com notas cromáticas que vai em crescendo, acrescentando o som das cordas e o crash de um prato de bateria quando funcionários falam em “desejando estar juntas” e “vestir a camisa”.

Nada mais over, melodramático e canastrão do que essa combinação de uma trilha musical ao estilo do pianista kitsch Richard Clayderman como moldura de relatos de pessoas “emocionadas” com enquadramentos de câmeras meticulosamente assimétricos para passar uma atmosfera de declarações espontâneas.

Estamos na linguagem da canastrice: a fotografia em tons pastéis (figurinos e os sets em tons claros), com uma paleta de cores e tonalidade que criam uma atmosfera que lembra comerciais de produtos matinais e de iogurtes probióticos. Tudo tão previsível que se torna caricato, exageradamente previsível e saturado. Canastrão, portanto.

Em postagem anterior discutíamos esse elemento da canastrice na propaganda contemporânea: por que ninguém percebe a evidente natureza ficcional do vídeo, feito com recursos estéticos manjadíssimos do pior do cinema e TV? A opinião pública não percebe a natureza “fake” ou “forçada” destes pseudoeventos porque própria estrutura de percepção do real já foi alterada anteriormente por décadas de cultura pop: tomar o real não a partir dele mesmo, mas a partir dos seus simulacros – sobre a canastrice dos dispositivos da propaganda clique aqui.

Paradoxalmente o exagerado eufemismo das estratégias indiretas de RP é encoberto pela canastrice da linguagem da propaganda. Nossa percepção está tão saturada pela linguagem publicitária e pelos filmes hollywoodianos que quando vemos uma “prestação de contas” da Samarco em nessa linguagem over e saturada não nos damos mais conta da natureza fake, forçada e das expressões eufemistas – “a gente”, “de repente”, “tínhamos uma forma diferente de trabalhar” etc.









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