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segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Passado o furacão, o que temos pela frente?...




pescado no Correio da Cidadania


Para quem está comprometido com a luta social e aspira a uma sociedade baseada na igualdade substantiva, a derrota de Aécio foi um alívio. Dos males, o menor, mas a vitória de Dilma não deixa nada a comemorar.

O saldo da campanha é tenebroso. Contratados a peso de ouro para manipular a opinião pública, marqueteiros venderam candidatos como mercadorias. Para diferenciar seus produtos, abusaram da ingenuidade da população. Magos da pirotecnia midiática, reduziram o eleitor a consumidor, criando expectativas que não se realizarão. Para desconstruir os adversários, exploraram medos que alimentam falsos antagonismos e envenenam o ambiente político.

Na falta de substância política, a eleição foi transformada numa briga de torcida. Em clima de caça às bruxas, as paixões foram levadas a um paroxismo descabido. O apelo à emoção foi proporcional ao descaso pela razão. A virulência das agressões mútuas foi em razão inversa às reais diferenças entre os contendores.

O eleitor foi sistematicamente ludibriado. As divergências existentes entre as duas alas do Partido da Ordem são secundárias e circunstanciais. Os que hoje estão com o PT – Sarney, Maluf, Collor, Kátia Abreu – estavam ontem com FHC e Collor e anteontem serviam a ditadura militar. Amanhã podem perfeitamente debandar para o PSDB. À exceção de alguns extremados, os que mandam de fato – o capital internacional e a plutocracia nacional – estão muito bem servidos nas duas candidaturas. Basta ver o rio de dinheiro investido em ambas.

A completa desconexão do debate eleitoral com a realidade transformou o país num manicômio. Surpreendido pelo antagonismo entre petistas e tucanos, um desavisado que desembarcasse de paraquedas poderia até imaginar que o Brasil vive uma situação pré-revolucionária, quando, na verdade, o que está em questão é exatamente a conservação do status quo. A eleição foi apenas para escolher quem comandará a reciclagem do capitalismo liberal implantado por Collor 25 anos atrás. Nada mais.

O clima apocalíptico que tomou conta do segundo turno é despropositado e faz lembrar as legendárias guerras entre as famílias Sampaio e Alencar pelo controle da prefeitura de Exu no século passado. Para os que se alinhavam com o clã Sampaio, a vitória de um Alencar poderia, de fato, ter consequência real (e vice-versa), mas, para os que não faziam parte da corriola e estavam condenados a ralar para sobreviver, o resultado era indiferente. As famílias alternaram-se durante décadas no poder sem que a miséria se modificasse.

Deliram os que imaginam que o país está na iminência de uma ruptura institucional. Não há movimentação golpista algum, nem à direita nem à esquerda. A única conspiração em curso é aquela que une as duas facções do Partido da Ordem contra o povo, patente na cumplicidade de ambas com a política de contra-insurgência preventiva para conter o conflito social e na irmandade na hora de arquitetar tenebrosas transações.

A briga de foice é um teatro e faz parte do jogo eleitoral. Quando é conveniente, o antagonismo é imediatamente suspenso. Quem se esquece da idílica cena de Haddad e Alckmin, descontraídos num requintado restaurante de Paris, em junho de 2013, poucos meses depois de terem trocado cobras e lagartos na renhida disputa pela prefeitura de São Paulo? Enquanto o pau comia solto nas ruas de São Paulo tomadas por jovens trabalhadores que lutavam contra o aumento das tarifas de transporte público, prefeito e governador estavam perfeitamente entrosados na política de repressão aos protestos e na estratégia de negociação com os gangsters que controlam os megaeventos internacionais.

Destituída de substância, a polarização entre as duas alas do Partido da Ordem só serviu para degradar o ambiente político. O brasileiro sai da campanha mais descrente nos políticos e sem nenhuma consciência sobre as causas de seus problemas e suas possíveis soluções.

Ninguém pode banhar-se duas vezes na mesma água do rio. O segundo governo Dilma não será uma repetição do primeiro. Pela força das circunstâncias, será mais conservador e truculento. As condições objetivas e subjetivas que o determinam deterioram-se, estreitando sensivelmente o raio de manobra para acomodar, através da expansão do emprego, do aumento dos beneficiários das políticas compensatórias e da cooptação dos movimentos sociais, as mazelas de uma modernização canhestra, que aprofunda a dependência e o subdesenvolvimento.

Na economia o cenário é sombrio. Os problemas acumulados na farra de consumo de bens conspícuos impulsionada pela especulação internacional têm consequências. O aumento da dependência externa deixa a economia brasileira à mercê dos humores do mercado internacional. O agravamento da crise mundial, que entra no seu sétimo ano sem perspectiva de solução, não abre espaço para o crescimento. A ameaça de movimento de fuga de capitais sujeita o país ao xeque-mate da dívida externa. Nesse contexto, as pressões da grande burguesia globalizada para que o Brasil realize uma nova rodada de ajustes liberais empurra a política econômica para a absoluta ortodoxia. As veleidades neodesenvolvimentistas são coisas do passado. O próximo Ministro da Fazenda será escolhido diretamente pelo mercado e estará mais próximo de Armínio Fraga do que de Guido Mantega.

No âmbito da sociedade, a perspectiva é de crescente convulsão. A modernização mimética que copia os estilos de vida e padrões de consumo das economias centrais agrava os problemas fundamentais do povo. A frustração generalizada com um cotidiano infernal acirra os ânimos e polariza a luta de classes. Sem vislumbrar saída para o circuito fechado que transforma a vida do trabalhador num pesadelo sem fim - na fábrica e fora dela -, o brasileiro torna-se um barril de pólvora prestes a explodir. O aumento da violência e o fim da paz social prenunciam um futuro de grandes tensões e crescente turbulência social.

Nas altas esferas da política, a classe dominante afia as garras para enfrentar o conflito social. A crise do sistema representativo reforça o consenso a favor de soluções repressivas para a inquietação social, aumentando a pressão a favor da criminalização da contestação social como pressuposto da estabilidade democrática. O giro conservador da opinião pública, o aumento assustador da bancada de deputados da direita mais desqualificada e a mobilização de uma classe média histérica deslocam o status quo sensivelmente para a direita. Contestado pela juventude que foi às ruas protestar contra os desmandos dos governantes, o sistema democrático brasileiro assume descaradamente seu caráter de classe e se afirma abertamente como uma democracia de segregação social. A liberdade política é privilégio exclusivo da plutocracia e se manifesta concretamente na possibilidade de escolha entre alternativas integralmente comprometidas com os parâmetros da ordem.

A presidente retoma seu posto no Planalto em frangalhos. Antes mesmo de assumir o segundo mandato, sua credibilidade já se encontra comprometida pela gravidade das denúncias que apontam a cumplicidade direta do Planalto com esquemas de corrupção arquitetados pela alta cúpula dos partidos da base aliada. Desta feita, não haverá um período de lua de mel. Ávida para voltar ao governo federal depois da quarta derrota consecutiva, a oposição não dará trégua. Sem arsenal ideológico e programático para diferenciar-se qualitativamente do governo petista, só lhe resta sangrar Dilma do primeiro ao último dia de seu mandato.

Ninguém passa impune pelo pacto com o diabo. Sem capacidade de mobilizar a população e prisioneira de compromissos espúrios, Dilma ficará nas mãos da máfia que, a mando dos negócios, controla o Congresso Nacional. Vítima da própria covardia, que não lhe permitiu enfrentar a tirania dos magnatas da informação, será objeto diário da chantagem da grande mídia. Sem meios para defender-se, tornar-se-á ainda mais dócil às exigências do capital. Se ousar desafiá-lo, será imediatamente confrontada com o espectro do “impeachment” democrático. É o modo de funcionamento das democracias burguesas contemporâneas na periferia latino-americana do capitalismo.

Para quem se ilude com a possibilidade de uma tardia redenção do PT, a ressaca da festa democrática será monumental. A juventude romântica e os homens de boa fé seduzidos pelo canto de sereia do “coração valente” logo perceberão que foram logrados e sentirão na pele a ingratidão da presidente. Assim que a população for às ruas para protestar contra os descalabros do capitalismo selvagem, as disputas fratricidas entre as facções do Partido da Ordem serão suspensas. Como irmãos siameses, as duas alas do Partido da Ordem estarão monoliticamente unificadas, armadas até os dentes, para reprimir os manifestantes com brutalidade, como se fossem inimigos internos que devem ser aniquilados, como aconteceu em Junho de 2013, nas jornadas da Copa de 2014 e toda vez que o povo se levanta contra os privilégios dos ricos. Passado o risco iminente de descontrole social, as duas facções voltarão a engalfinhar-se pela disputa controle do Estado.

A falsa polarização entre a esquerda e a direita da ordem somente será superada quando a os trabalhadores não tiverem qualquer ilusão em relação à possibilidade de que o capitalismo possa ser domesticado, seja pelo PT ou por quem quer que seja. O capitalismo dependente vive da superexploração do trabalho e tem na perpetuação de um grande estoque de pobreza um de seus pressupostos. A situação torna-se ainda mais grave quando a sociedade enfrenta um processo de reversão neocolonial que solapa a capacidade de o Estado fazer políticas públicas.

Do show de horror da eleição de 2014, sobra uma lição: para sair do antro estreito das escolhas binárias entre o ruim e o pior, é preciso que a esquerda socialista se unifique e entre em cena.

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