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quinta-feira, 17 de abril de 2014

Novas modalidades de privataria: água de beber e previsão do tempo





por Pete Dolack, em Systemic Disorder - tradução Heloisa Villela (com ajustes botocudos)






O lucro deve ser o único direito humano já que é uma necessidade tão básica, o que a água não é. Apesar da moderna indústria de relações públicas ter tido sucesso rebatizando barões ladrões de “capitães da indústria”, nem mesmo o mais bem preparado batalhão de artilharia pode impedir, o tempo todo, os executivos das corporações de dizerem acidentalmente ao mundo o que realmente pensam.

Não é segredo que algumas das maiores corporações do mundo estão drenando aquíferos e revendendo água potável com grandes lucros. Mas eles querem ir mais longe e tornar obrigatório pagar pela água. A água é simplesmente mais uma “commodity de mercado” na visão deles – mais notoriamente propagada pelo presidente do Conselho diretor da Nestlé S.A., Peter Brabeck-Letmath em um vídeo de seis minutos divulgado por sua empresa.

É justo dizer que a aparente tentativa da Nestlé de projetar uma imagem de empresa que sobriamente lida com os problemas mundiais com uma racionalidade severa saiu pela culatra espetacularmente.

A linguagem corporal do Sr. Brabeck-Letmathe transforma em tolice a argumentação da Nestlé, apresentada após a divulgação do vídeo, de que ele não queria dizer o que disse. Começando na marca dos 2 minutos e 7 segundos, ele aparece dizendo:

“A questão é se devemos privatizar o suprimento normal de água para a população. E existem duas opiniões a esse respeito. Uma opinião, que eu acho radical, de ONG (organização não governamental) que martela a declaração de que a água é um direito público”.

O Presidente torce o rosto à ideia da água ser considerada um direito, depois deixa escapar um sorriso afetado demonstrando desprezo indisfarçável pelo que se segue imediatamente:

“Isso significa que como seres humanos vocês devem ter direito à água. Essa é uma solução extrema. E a outra visão diz que a água é um alimento como outro qualquer e como qualquer outro alimento ela deve ter um valor de mercado. Pessoalmente eu acredito que é melhor dar um valor ao alimento para que todos nós tenhamos conhecimento de que ela tem um preço e que é preciso tomar medidas específicas para a população que não tem acesso a essa água e aí existem várias possibilidades”.

O direito à água é “radical”!

Essa opinião pode ser considerada “radical” em muitas salas de reuniões de corporações, mas essas opiniões não estão livres de interesses corporativos.

Se o caminho para aumentar os lucros depende de privatizar bens comuns e serviços públicos, esse é o sistema de crenças que surgirá. Graças ao seu incansável trabalho de combater essas crenças “radicais”, 0,1% está vivendo muito bem, obrigado.

A diferença de perspectiva dos industriais e financistas e do resto do mundo é exemplificada pelo Sr. Brabeck-Letmathe na marca dos 5’34” do vídeo:

“Nós nunca estivemos tão bem. Nunca tivemos tanto dinheiro. Nunca fomos tão saudáveis. …Nós temos tudo que queremos e ainda vamos por aí como se estivéssemos de luto por algo”.

Talvez as coisas não sejam assim tão rosa florais

Sim, pare de choramingar somente porque os salários estão declinando em todo o mundo, o desemprego continua alto, a desigualdade está atingindo níveis nunca vistos desde os anos 20, o meio ambiente está perigosamente poluído, o aquecimento global está fadado a fugir de controle, o poder dos grandes capitalistas e de suas corporações multinacionais transformou a participação democrática em uma piada, trabalhadores mais velhos são jogados para fora de seus trabalhos e suas pensões são cortadas unilateralmente, existem poucos empregos para os trabalhadores jovens que estão mergulhados em dívidas, os custos de moradia e educação aumentarem bem mais rapidamente do que a inflação, e os governos mundiais dão as mãos aos capitalistas em uma corrida global ao fundo do poço sem prestar contas a seus eleitores.

Se sua ideia de democracia não é nada mais do que ter mais sabores de refrigerantes cola para escolher, então, com certeza, você tem tudo que quer.

Em um esforço para reduzir o estrago, a Nestlé subsequentemente divulgou um release alegando que seu presidente “pensa que a água é um direito humano”.

Acontece que, se fossemos acreditar na propaganda da Nestlé, ele estava meramente “tentando conscientizar a respeito de tema da falta de água. … Ele não é a favor da privatização, mas defende mais eficiência na administração da água para indivíduos, indústrias, agricultura e governos”.

Isso não casa com que o presidente da Nestlé disse claramente no vídeo. Nem leva em conta o papel da Nestlé em tornar a água ainda mais escassa.

A água, na verdade, é um grande negócio. A água engarrafada é dominada por três das maiores indústrias do mundo: a Coca-Cola Company (Dasani), a PepsiCo Inc. (Aquafina) e a Nestlé (Poland Springs, Deer Park, Arrowhead e outras).

As duas maiores empresas privadas de administração de água do mundo, Veolia Environment e Suez Environment, têm receita somada de US$ 51 bilhões. Muito para abocanhar, com certeza.

Pagando pela mesma coisa que sai da sua torneira

As empresas que vendem água engarrafada não estão necessariamente enviando equipes para montanhas remotas. Uma reportagem no AlterNet, de Michael Blanding, diz:

“Muitas vezes a água engarrafada é água da pia. Ao contrário da imagem da água cristalina brotando na montanha, mais de um quarto da água engarrafada, na verdade, vem de suprimentos municipais de água. … 

Tanto a Coca quanto a Pepsi usam exclusivamente água da torneira como fonte, enquanto a Nestlé usa água da torneira em algumas marcas. É claro que a Coca e a Pepsi fazem propaganda das medidas adicionais que tomam para purificar a água depois que ela sai da torneira, as duas empresas filtram a água várias vezes para remover partículas antes de tratá-la com técnicas adicionais como ‘osmose revertida’ e tratamento de ozônio. Osmose revertida, entretanto, não é nada sofisticado – consiste essencialmente do mesmo tratamento aplicado por filtros comerciais de água disponíveis para residências, enquanto ozonização (um processo de tratamento de água) pode incluir problemas adicionais como formação do químico bromato, suspeito de ser carcinogênico”.

Um estudo do Conselho de Defesa das Riquezas Naturais analisou mais de 1.000 garrafas que representam 103 marcas de água engarrafada e encontrou, em um terço, níveis de contaminação que ultrapassam os limites permitidos. Entre esses contaminantes existiam químicos sintéticos, bactérias e arsênico.

Não é apenas o engarrafamento e o empacotamento de água da bica que dá lucro – fornecer água da bica também é se ela for privatizada.

Um estudo da Food & Watch descobriu que:
  • Serviços privatizados tipicamente cobram 33% mais pela água e 63% mais pelo esgoto do que serviços de governos locais.
  • Depois da privatização, o preço da água aumenta cerca de três vezes mais do que o índice de inflação, com um aumento médio de 18% a cada dois anos. 
  • O lucro das corporações, dividendos e impostos podem somar outros 20 a 30% aos custos de operação e manutenção.

Dúzias de municípios na França, Alemanha e Estados Unidos estão tomando de volta seus sistema de água e esgoto, revertendo privatizações anteriores. Governos locais consistentemente descobriram que a privatização levou a preços mais altos, reduziu os serviços e deteriorou as condições de trabalho para os funcionários que permaneceram em seus cargos.

As corporações que operam esses sistemas estavam apenas colocando em prática o que o presidente da Nestlé disse em seu vídeo: a água é uma mercadoria a ser comprada pelos que estiverem dispostos a pagar mais caro.

Em um caso notório, o Banco Mundial forçou a privatização do sistema de água na cidade boliviana de Cochabamba, em 1999. A Bechtel, empresa que recebeu o sistema de água depois de ter sido a única que apresentou proposta de compra em um processo secreto, cobrou uma quantia igual a um quarto da renda familiar média dos moradores e impôs um contrato que proibia a coleta de água da chuva. Depois que foi obrigada a deixar a cidade por causa de protestos massivos, que contaram com o apoio de uma campanha global, a Bechtel processou a Bolívia exigindo US$ 50 milhões por danos e lucros perdidos, apesar de seus investimentos serem estimados em menos de US$ 1 milhão e o faturamento da Bechtel ser seis vezes o tamanho do produto interno bruto da Bolívia.

Esperando até que a previsão do tempo gere lucro

Outros serviços governamentais, que se considera garantidos, como a previsão do tempo, não são exceção. Apesar de soar bizarro, executivos de serviços privados de previsão do tempo como o AccuWeather vêm argumentando, há anos que o Serviço Nacional do Tempo do governo dos Estados unidos deve ser proibido de divulgar previsões meteorológicas.

O Serviço Nacional do Tempo é o que tem as previsões mais confiáveis do país e os contribuintes gastam milhões de dólares nele. Ainda assim, nós supostamente temos que eliminar este benefício público, convertê-lo completamente em subsídio corporativo para que um capitalista possa lucrar!

O conceito de que o conhecimento de uma tempestade que se aproxima deva ser revertido para aqueles dispostos a pagar foi defendido pelo AccuWeather e por um grupo lobista que se auto intitula Associação Comercial de Serviços do Tempo, com uma das luzes mais fracas do senado dos Estados Unidos, o fundamentalista Rick Santorum, que promoveu um projeto de lei em 2005 que impediria o Serviço Nacional do Tempo de divulgar previsões do tempo com exceção durante emergências específicas.

De acordo com a lei, a agência continuaria coletando dados e daria todos eles a empresas privadas.

O AccuWeather divulgaria as previsões sem arcar com o ônus de coletar seus próprios dados os recebendo de graça às custas do contribuinte.

Como salientou uma reportagem na revista eletrônica Slate, o texto da lei dizia:

“Dados, informação, direção, previsão e alertas devem ser divulgados … através de um portal de dados desenhado para acesso de volume por provedores comerciais de produtos e serviços”.

A velhacaria dessa lei foi revelada claramente naquele momento por Jeff Masters em seu blog Weather Underground:

“A indústria privada da previsão do tempo faz suas próprias previsões, mas em geral checa suas previsões contra o que diz o Serviço Nacional do Tempo antes de divulgá-las. Se a previsão do SNT é muito diferente, eles frequentemente fazem ajustes na direção das previsões do SNT, o que resulta em uma previsão de melhor ‘consenso’. Então, de acordo com a proposta de lei, não apenas perderíamos a melhor previsão do tempo disponível, mas as previsões das empresas privadas também piorariam”.

Mas um par de capitalistas teria um grande lucro – e daí se mais gente morreria em enchentes ou desastres naturais? Essa é a mágica do mercado em ação.

2 comentários:

  1. Se bem que na França a água é privatizada desde o tempo de Napoleão. Mas eles são esquisitos, não tomam muito banho... No geral não vejo sentido em privatizar distribuição de água, já que a fonte da mesma depende de recursos eminentemente públicos (rios, nascentes, etc.). Compensar quem conserva estes recursos naturais tipo nascentes é uma discussão mais interessante.

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  2. Temos um programa de PSA (Pagamento por Serviços Ambientais) aqui em SB, que anda meio de lado e tem produzido resultados muito aquém do que se esperava. Além disso existe uma crise existencial na cabeça de alguns (principalmente da minha - rsrsrs) se essa coisa de mercantilizar tudo inclusive - e principalmente - a natureza, em termos de $$ venha a ser uma coisa salutar pro futuro.... Duvidas... duvidas...

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