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terça-feira, 4 de junho de 2013

Guerrilha do Araguaia [2]


 pela Folha do Bico - Bico do Papagaio


A chuva caía forte e no silêncio quase escuro do final da tarde, a mata produzia barulhos assustadores para quem não fosse familiarizado com a floresta. Mas o som que Apí Suruí jamais esqueceria estava a poucos metros dele. Eram os gemidos do guerrilheiro Arildo Valadão, o Ari, preso horas antes. Ari estava com as mãos, pés e joelhos amarrados. Apí lembra que os pés do guerrilheiro estavam cheios de feridas e frieiras. Ari gemia enquanto soldados, num sadismo premeditado, amolavam terçados para ‘cortar o pescoço’ do prisioneiro. “Botaram ele num paneiro e depois jogaram um jabuti dentro para ficar mordendo o pé dele”, conta Apí, à época um jovem índio de 20 anos. Os soldados levariam Ari para o Brejo Grande. “Nunca mais vi ele depois disso”, diz.



O relatório Arroyo, um dos principais documentos que tratam da Guerrilha do Araguaia, registra a morte de Arildo Valadão em novembro de 1973. Teria sido o primeiro guerrilheiro a ser decapitado para identificação. A cabeça levada para a base militar em Xambioá, divisa com o município de São Geraldo do Araguaia. Segundo relatos anteriores de militares, a cabeça de Ari foi decapitada por mateiros a mando dos soldados. Como os mateiros utilizados foram camponeses das localidades atingidas pela guerrilha ou índios suruí, é sobre esses dois grupos que recaíram sempre esse tipo de acusação. Dependendo das fontes consultadas, há relatos informando terem sido de quatro a seis os guerrilheiros com as cabeças cortadas.

É um assunto ainda tabu entre os suruís. Nos relatos feitos é difícil que contem esse episódio. “Eles sempre foram acusados de facilitar a ação dos militares, mas o fato é que, primeiro, eles não sabiam o que acontecia, e, segundo, foram obrigados por soldados armados a servir de guias. Então o relato deles é baseado no ‘não’, de ‘não sabíamos que estava ocorrendo uma guerra”, diz a antropóloga Jane Beltrão.

É um dos motivos do silêncio de décadas entre os índios mais velhos. “É uma cicatriz que para nós não vai fechar. Para nós é difícil. Cada vez que se fala nisso, causa muita revolta. Meu pai foi ameaçado até de ser jogado de um avião”, diz Clelton Suruí. Clelton é uma das jovens lideranças indígenas que pretende passar a limpo a história da própria tribo. Na aldeia Itahy, onde mora, dentro da reserva dos suruís, Clelton cresceu ouvindo as histórias do pai, Tiwacu.

“Um parente foi obrigado a cortar cabeça de guerrilheiro”, admite Tiwacu, 59 anos. Tiwacu Suruí tem trajetória diferente entre os índios da reserva. Perdeu pai e mãe muito cedo. Levado por Frei Gil Gomes Leitão, foi criado em colégio paulista. Quando tinha 18 anos, voltou à aldeia. O ano era 1972. “Na Transamazônica tinha exército procurando os guerrilheiros, os ‘camará punura’, como nós chamamos. Depois desceram dois helicópteros no centro da aldeia. Dois soldados desceram com arma e disseram pra mim: tu vai com nós fazer as buscas. Eu disse: ‘assim, em cima da hora? Deixa me despedir da mulher”.

Tiwacu foi posto no helicóptero e levado para a Base da Bacaba. “Falei com o tenente porque tava me levando e ele disse que eu ia saber. Perguntei de novo e ele respondeu que se eu perguntasse mais uma coisa era capaz de me jogar fora”. Na chegada, perguntaram a Tiwacu o que ele sabia fazer. Como sabia aplicar injeção disseram que ele seria ajudante do enfermeiro.

Foi o que ele menos fez. Tiwacu precisou procurar pentes de metralhadora perdidos na mata, ajudar a localizar túneis onde guerrilheiros armazenavam víveres e munição e até foi obrigado a agredir e rasgar as roupas de uma índia considerada por ele como mãe de criação. Presenciou tiroteios entre os guerrilheiros e o Exército. Um tiro de ‘chumbete’ na costela é um dos saldos que carrega do período. “Foram três anos convivendo com essas coisas”, diz.

Da primeira vez que foi obrigado a servir de mateiro, Apí e mais um companheiro saíram num grupo com dez soldados. Seguiram em direção a um castanhal. Em uma picada, a arma de um soldado disparou acidentalmente e foi uma correria para todos os lados. “Todo mundo ia assustado”, lembra.

Eram caminhadas longas. Apí saiu da aldeia sem comer nada. À noite, um segurava a camisa do outro, numa tentativa de superar o breu. “Passamos andando de quatro numa ponte”, conta. Ao amanhecer a patrulha capturou um homem acusado de ajudar a guerrilha. “Botaram ele num formigueiro, depois levaram para Marabá”, diz.

“No outro dia de tarde pegaram eu e meu irmão Warani de novo. O helicóptero pegou nós e levou para perto do Brejo Grande. Acampamos numa barraquinha velha. Vimos muita casa ser queimada pelos policiais. Era tempo de Natal”, diz o suruí.

No terceiro dia de expedição forçada, dessa vez em matas próximas a Xambioá, Apí testemunhou a morte de quatro guerrilheiros. Foi obrigado a carregar os corpos ensacados até o helicóptero. “Fiquei com muito medo quando vi”, diz. No outro dia, ao retornar ao local viu urubus comendo os miolos que restavam espalhados pelo chão. “O fedor era muito grande”, lembra.

Ver corpos de pessoas jogados na mata ou cabeças decapitadas é uma violência extrema para os suruís, ressalta a antropóloga Jane Beltrão. “Eles fazem parte dos Tupi e a tradição é de não deixar pessoas sem enterramento. Eles têm cuidado com o enterro. Qualquer corpo insepulto deixa um suruí incomodado. Isso porque eles se decompõem e podem contaminar animais que os alimentam. E há a ideia dos ‘karuara’, espíritos que se desassossegam se esse ritual não for feito e podem levar doenças às aldeias como castigo”.

Durante três anos os suruí presenciaram de perto o desenrolar de uma guerra suja. Pagaram um preço demasiado alto por isso.

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