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domingo, 17 de abril de 2011

O pajé que fala com as árvores

ilustração Juliano Oliveira

Adaptado das crônicas (sempre ótimas) do prof. Bessa Freire, no site Taqui pra Ti


O xamã guarani Wherá Tupã, da aldeia Yynn Moroti Wherá, município de Biguaçu, aqui mesmo na nossa Santa (e bela) Catarina é um pajé guarani que faz até o ateu mais bastardo se sentir filho de Nhanderu? (Nhanderu Tenondé, o criador do mundo)

Nascido em 1911, Wherá Tupã, conhecido como Alcindo Moreira, comemorou seu aniversário de cem anos no dia 25 de janeiro. Casado com dona Rosa Poty-Dja, com ela teve oito filhos – cinco mulheres e três homens – e uma prole de 43 netos, 28 bisnetos e, por enquanto, três tataranetos. Com um século de existência, esbanjando saúde e vitalidade, ele viajou de Florianópolis a Goiânia, acompanhado do filho Geraldo, só para participar da Semana dos Povos Indígenas, realizada de 11 a 15 de abril, na PUC de Goiás.

Todo mundo se pergunta de onde é que esse homem baixinho, pernas e braços musculosos, cabelos grisalhos, olhos sempre brilhando, tira tanta força e energia? “Eu cheguei aos 100 anos, porque tive outra criação, fui educado como um guarani” – ele conta. Aprendeu a cuidar do corpo e do espírito com igual atenção. Ainda hoje, acorda com os galos, faz suas orações, conversa e dá conselho aos mais jovens, vai à roça plantar milho, feijão, aipim, batata doce e hortaliças, base de sua alimentação, onde não entra nem sal, nem açúcar.

Ele tem a certeza que o segredo de sua longevidade reside também no fato de viver sempre cercado de toda a prole, cultivando o afeto familiar. “Ninguém é feliz sozinho” – diz. Dessa forma, vai tecendo os fios da felicidade cotidiana, no convívio com as pessoas queridas, no trabalho diário no qual realiza uma série de exercícios físicos, e na preparação de uma comida saudável.

Alcindo Moreira, tcheramoi, é o líder religioso que preside os rituais na Casa de Reza – a Opy,batiza as crianças, orienta e aconselha os jovens e cuida da saúde de todos, com ajuda de Nhanderu, de quem recebe inspiração e com quem vive em contato permanente: - “Doença? Não sei o que é isto. Médico fica longe de mim. Me trato com as plantas que cultivo na aldeia, seguindo a sabedoria dos meus antepassados”.

Ele é um sábio, um karai. Conhece tudo sobre as plantas. Aprendeu com seu pai, João Sabino Kauã, de quem recebeu algumas sementes. O plantio e a colheita das plantas são frutos da observação sistemática, mas constituem também expressões máximas da religiosidade, do trabalho coletivo e da partilha.

Em 2007, Wherá Tupã, seu filho Geraldo e eu fomos juntos à ilha do Marajó. Tive o privilégio de entrar na floresta, em Soure, com ele e com a pajé Zeneida Lima, quando assisti a uma aula de botânica dada pelos dois. Naquela ocasião, cada planta foi nomeada, identificada, cheirada, tocada com carinho, reverenciada, catalogada, classificada, analisada, com suas propriedades medicinais e alimentícias reconhecidas e enaltecidas.

- As árvores falam – disse ele – a gente é que desaprendeu e não sabe mais escutar o que elas dizem.

Caminho florido

As árvores falam e os guaranis escutam, porque para eles toda a natureza faz parte da sociedade, não está separada da cultura. As plantas, os animais, os acidentes geográficos, os rios, as montanhas, os fenômenos meteorológicos são dotados de humanidade e de consciência. “Essa terra que pisamos é o nosso irmão, ela tem vida, é uma pessoa, tem alma”.

Esse é o arandu porã, o bom conhecimento que os guarani trazem para dentro da academia e que começa a fazer parte das bibliotecas universitárias, pois aparece registrado e analisado nas monografias, dissertações, teses e livros elaborados por mestres e doutores. Alguns deles foram ouvir o xamã Wherá Tupã lá na sua aldeia.

É o caso do trabalho sobre “música e xamanismo guarani” feito na USP pela doutora Deise Lucy Montardo, hoje professora da Universidade Federal do Amazonas; do livro “O caminhar sob a luz, território Mbya à beira do oceano” da doutora Maria Inês Ladeira; das pesquisas de Ana Lucia Notzold e Flávia Melo e das dissertações defendidas na UFSC por Aguirre Neira, Ismênia Vieira, Helena Alpini e tantos outros.

Esses trabalhos criaram uma ponte entre os guarani e a Universidade, confirmando aquilo que escreveu o antropólogo Darell Posey: “Se o conhecimento do índio for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com sucesso por milhares de anos...”

A botânica é um campo que os guarani dominam bem. No que diz respeito ao uso de plantas medicinais, muitas pessoas, mesmo de diferentes aldeias, até mesmo não-indígenas, se deslocam às vezes de longe em busca dos tratamentos do xamã Alcindo Moreira, tanto para doenças físicas como espirituais. O tratamento que ele dá é muito respeitado e sua sabedoria é requisitada em vários lugares, conforme testemunhou Diogo Oliveira, numa monografia feita para o Laboratório de Etnobotânica do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina:

Na aldeia de Biguaçu existe uma vereda – a trilha da escola, chamada Tape Poty, que significa caminho florido – onde foram colocadas placas com os nomes de algumas plantas utilizadas na medicina doméstica e identificadas por Wherá Tupã. “Vocês pisam nos remédios e não sabem”ele costuma dizer.

Esses saberes tradicionais foram, durante muito tempo (e continuam, por vasta parcela do modus vivendi moderno), pisoteados e discriminados, por serem produzidos por culturas taxadas de “primitivas” e de “obstáculo ao progresso”.

Em Goiania Alcindo Whera Tupã conversou com as crianças e os jovens. Quem sabe essa nova geração aprende a falar com as árvores, eliminando o pesadelo de ter de pedir exame de DNA de Papá Nhanderu Tenondé!

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